Por João Paulo Campos
Sabemos que um dos sintomas do cinema brasileiro vem da comédia. Na cena independente, o buraco é mais embaixo. São poucas as produções voltadas ao gênero, mas ainda temos o privilégio de lembrar dos filmes de, por exemplo, Tavinho Teixeira e Fábio Leal. Um amigo, cineasta que flerta com o riso em seus filmes, brinca comigo em sua produtora ao colocar para tocar a música Complexo de épico do Tom Zé. Ele remixava com sua voz: “todo ‘diretor’ brasileiro é um complexado”. Pois “Cervejas no escuro” (Tiago A. Neves, 2023), um dos destaques da Mostra Aurora deste ano, vai no osso desse problema.
O filme começa no luto. Acompanhamos um plano-sequência que deambula em meio a um funeral. Pessoas conversam no ambiente escuro. Passeamos entre os corpos que se movem com vagar, até toparmos com um caixão. O preâmbulo pode parecer estranho para uma comédia, mas o desenrolar da aventura que “Cervejas…” nos propõe faz tudo fazer sentido. A obra é uma azaração que faz curtir e faz pensar – entre o riso e o “assombro glauberiano que está em todos nós”, como relatou Nivaldo Rodrigues no debate do longa no dia seguinte a sua exibição no Cine Tenda, Tiradentes. Poderia o riso driblar a morte e o terror?
A história mistura as estórias da protagonista com a história da Paraíba. Estamos em Princesa Isabel, pequena cidade nas bordas do estado – fronteira com Pernambuco. Uma mulher idosa, chamada Edna, tem o sonho de reviver suas memórias através da arte. Decide juntar um grupo de produção para fazer um filme baseado na sua vida. A equipe inexperiente é guiada pelo desejo arrebatador da diretora de tocar essa fita. Os coices, intrigas e mal entendidos do processo de filmagem e distribuição do filme são a principal fonte de comicidade do longa, que se desenvolve tal qual uma comédia de situações.
Trata-se de uma obra teatralizada feita com um grupo de atrizes e atores amadores da região, mas parar por aí seria perder a festa de Tiago A. Neves e sua equipe. A força do filme está justamente em sua mise en scène que mistura elementos do circo, teatro de variedades (Vaudeville da Paraíba) e teatro épico brechtiano (cabra da peste).
É um caos ordenado pela direção e montagem de artistas que estão estreando no longa-metragem. A palavra tem poder: uma obra que faz um uso intensivo do verbo como ação ou ato de fala. Performance delirante do hablar? Sinto que as personagens não param de falar e, mesmo assim, não perdem a linha! E há sem dúvidas um uso plural do diálogo, pois eles falam entre si para nos arrancar gargalhadas, mas também dialogam conosco para nos ensinar um pouco da história da Revolta de Princesa.
Essa revolta popular ocorreu em 1930 e culminou na declaração de independência provisória do município de Princesa Isabel em 1930 em reação à eleição de João Pessoa para Presidente do Estado da Paraíba, político responsável por uma série de transformações político-administrativa que enfraqueceram o poder econômico e político de coronéis do sertão. Com a independência, o município passou a se chamar República de Princesa e criou um novo hino, bandeira e um jornal chamado O jornal de Princesa. Tudo terminou como em Canudos: carnificina, tortura, humilhação. Mas em nome da República, não podemos esquecer. E isso está expressado no filme.
Quando a equipe sai em busca de um importante casarão para filmar uma cena, a obra efetua um jogo de cena épico com uso de montagem dialética que vale a pena ser descrito e comentado. Primeiramente, o riso. “Esse é o casarão?!”, pergunta um dos personagens. O corte faz com que a montagem confronte a interrogação com a imagem irônica de uma ruína apodrecida pelo tempo. Muitos risos, mas então o tal “assombro glauberiano” que nos leva ao épico brechtiano. Dentro do casarão abandonado, eles investigam e nos ensinam. Um monólogo didático nos conta mais sobre a revolta, mas a montagem também interrompe a fruição para nos mostrar as marcas de bala em paredes vermelhas – rastros de ódio acompanhado por pipocos na banda sonora. Um choque de humores, o riso vira do avesso por um momento.
Está claro que “Cervejas no escuro” é um grande cozinhado de operações estéticas num caos ordenado que nos faz chegar ao legado de Carlos Reichenbach e Rogério Sganzerla. Sob o signo do caos, a obra de Tiago A. Neves atualiza a comédia popular de Carlos Manga, Oscarito e Grande Otelo numa chave inventiva-cabra-da-peste que quer nos fazer rir e escovar a história criticamente – a contrapelo.
Esta atualização estilística ocorre num contexto de novas tecnologias e, como escreveu Cleber Eduardo recentemente, uma outra cena de autoria cinematográfica no Brasil, que o crítico chamou de “novo cinema autoral brasileiro”. Uma das características centrais dessa renovação do campo cinematigráfico nacional é a entrada, na cena da autoria artística, de sujeitos periféricos: as bordas da metrópole, a aldeia, a negritude, a mulher feminista e toda uma nova geografia da invenção configurada por gente de cabo a rabo do país. Paraibano que vive e trabalha em Diadema, Neves usou a fricção e o dialogismo para transformar a ponta da Paraiba em palco de um teatro que nos lembra do cinema das origens: a estética das atrações, a brincadeira circense, o espectador (in)crédulo descrito por caras como o Tom Gunning. A obra nos convida a participar, brincar e pensar. E é divertido pra caralho. Evoé.