por Natália Reis
Why don’t you come in?
I never enter the office
on Sunday…
bad juju.
A cidade de Savannah, localizada no estado da Geórgia, é um tipo de complexo turístico cujos inúmeros portais disponíveis online oferecem experiências que vão desde caminhadas pelo centro histórico tomado por casas vitorianas com varandas ornamentadas e treliças de madeira, até “tours fantasmas”, que prometem “ser a maneira mais assustadora de experimentar espectros, fantasmas e o ‘hoodoo’ da cidade mais assombrada da América”. A fundação de Savannah resguarda ainda um planejamento urbano meticuloso que desemboca em ruas “perfeitamente lógicas” e simétricas (segundo nos informa uma blogueira viajante “perpetuamente perdida”), e inúmeras praças que, além de pontuarem esse rigor, vão abrigar monumentos históricos e carvalhos cobertos de musgo caindo em cascatas.
Parte desse cenário tipicamente sulista vai ser composta por representantes decadentistas do old money (entusiastas de clubes temáticos e eventos beneficentes) e por uma população negra significativa, descendente de africanos ocidentais/centrais escravizados e trazidos para trabalhar nas plantações costeiras de arroz e de algodão, e de caribenhos – em sua maioria haitianos que participaram do processo de independência das treze colônias como aliados das tropas americanas e francesas. Soma-se a isso a desapropriação de território indígena, uma zona portuária que recebia um fluxo contínuo de navios negreiros, participações ativas na guerra civil, três surtos de febre amarela (o primeiro contabilizando 666 mortos) e casos criminais famosos, como o assassinato do jovem Danny Hansford na propriedade conhecida como “Mercer House” em 1981. Uma trajetória que inevitavelmente vai concentrar alguns dos aspectos mais fulminantes do Southern Gothic.
Danny Hansford tinha 21 anos quando foi encontrado morto com um tiro na cabeça e outro no peito, deixando uma poça de sangue no tapete persa do escritório de Jim Williams. Williams, negociante de artes, preservacionista proeminente e principal responsável pela manutenção do centro histórico de Savannah nas décadas de 1960 e 1970, declararia ter atirado em legítima defesa no próprio empregado após uma discussão acirrada. Nos dias que se seguiram até o julgamento porém, uma série de informações sobre o réu e a vítima vieram à tona, tornando o caso todo mais sinuoso: Hansford sabidamente já havia atuado como traficante e garoto de programa, descrito por quem o conhecia como um indivíduo de humor instável, e mantinha um relacionamento afetivo turbulento com o patrão. Williams foi julgado no total de quatro vezes em quase nove anos, sendo sentenciado à prisão perpétua nos dois primeiros julgamentos, e tendo o terceiro anulado por uma série de incoerências nas investigações. Quando finalmente é absolvido, morre oito meses depois de insuficiência cardíaca em decorrência de uma pneumonia, aos 59 anos e, curiosamente, no mesmo local onde o corpo de Danny Hansford foi encontrado.
O assassinato na mansão Mercer, ou Mercer-Williams como agora é chamada, se torna notório em 1994 com a publicação de Meia-noite no jardim do bem e do mal, um “romance não-ficcional” de John Berendt cuja proximidade com o acusado e o envolvimento com a comunidade (Berendt vai estabelecer residência por cerca de cinco anos em Savannah), vão resultar numa abordagem Capoteana, contaminada pelas excentricidades da cidade e de seus moradores. Em meio a festas, bailes de debutantes, fofocas de socialites e rituais vodu no cemitério (o jardim, propriamente dito) requisitados por figuras influentes, emerge uma gama de personagens incomuns e situações insólitas que faz com que o relato de Berendt assuma uma tonalidade quase supranatural. O vodu haitiano e suas práticas cotidianas convergem para um ponto de destaque na narrativa, no qual questões amorosas, financeiras e, principalmente, as judiciais, são levadas aos “root workers” ou “witch doctors”, feiticeiros e sacerdotes, para serem resolvidas prontamente e por preços módicos. Williams vai buscar as “forças” ou “vibrações”, como chama com um ceticismo dosado o vodum – a energia primordial transculturalizada em “vodu”–, para apoiá-lo no que acreditava se tratar de um embate metafísico entre o bem e o mal. De um lado o promotor, o júri e Danny Hansford no além-vida, e do outro a parceria poderosa com Minerva, “voodoo priestess” e viúva de Dr. Buzzard, conhecida autoridade vodu do condado.
Três anos após o lançamento de Meia-noite no jardim do bem e do mal, Clint Eastwood adapta cinematograficamente a obra de Berendt com John Cusack incorporando palidamente o jornalista/escritor nova-iorquino, Jude Law como Billy Hanson – uma versão mais decorativa de Danny Hansford – e Kevin Spacey, como uma caricatura um tanto quanto predatória de Jim Williams (e um tanto quanto premonitória dos seus escândalos futuros). Uma parte considerável das críticas feitas à época avaliaram o filme de Eastwood como uma tentativa fracassada de manter o ritmo enérgico do livro. “Zumbificado”, “ausente” ou “adormecido” foram atributos usados para descrever John Kelso, o personagem de Cusack que vez ou outra aparece boquiaberto no desenrolar de uma cena decisiva. É quase sintomático que essa seja a percepção de um protagonista aparentemente absorvido pelo fluxo dos acontecimentos pelos quais transita, se nos determos no fato de que, nos momentos em que flerta com a ficção, John Berendt vai se inserir em situações das quais só pôde ter conhecimento posteriormente. O caráter vaporoso do testemunho fabricado como um par de olhos na janela é tanto um elo referencial quanto um elemento que de certa forma contribui para a aura enfeitiçada do filme. Há um equilíbrio entre a presença em suspensão do forasteiro, o “ianque”, que ronda a cidade em busca de uma história (e de um veredito próprio), e a presença arrebatadora de personagens como Minerva e Lady Chablis, a performer negra e transexual feita testemunha-chave no caso. Duas entidades femininas que, à sua maneira, representam um lado mais pantanoso do filme de Eastwood, um desvio do gênero “tribunal” e true-crime para o oculto e o maravilhoso.
Erzulie (ou ainda Ezili, Erzili) é um panteão de divindades (loas) do vodu haitiano em comunicação direta com os domínios do feminino, do amor, da beleza, da sensualidade e da maternidade. Dentre as suas inúmeras manifestações, dois aspectos de Erzulie parecem condensar bem o lugar que Minerva e Lady Chablis ocupam enquanto personalidades que inflamam a diegese respectivamente: Erzulie Dantor “a feroz protetora, a mãe (muitas vezes solteira) sincretizada com a Madona Negra de Czestochowa, que apareceu durante a cerimônia de 1791 em Boïs Cayman que iniciou a Revolução Haitiana” e Erzulie Fréda “a luxuosa mulata que adora perfume, música, flores, doces e risos, mas sempre parte aos prantos”. Interpretada por Irma P. Hall (a quem a wikipedia associa uma abundância de personagens matriarcais) Minerva é o pseudônimo de Valerie Boles, uma root doctor do condado de Beaufort que assumiu a posição do marido, Dr. Eagle (Dr. Buzzard), após sua morte. Como uma mãe zelosa, mas severa, Minerva é a materialização de uma forma de sabedoria ancestral que se sobrepõe às questões mundanas da moral e da lei dos homens – os grandes pivôs de Meia-noite… que assombram tanto o jornalista que decide investigar os fatos para alimentar seu livro e o ego adulado pelo novo amigo milionário, quanto o acusado, que jura perante à lei sua inocência ainda que todos os indícios apontem o contrário. É ela que prenuncia a chegada de John Kelso sentada no banco de uma praça de Savannah, que aconselha Jim Williams a não deixar seu rancor despertar a fúria do jovem amante assassinado: “diga coisas boas sobre ele”. Ela intercede enquanto realiza um feitiço para o bem e outro para mal à meia-noite no “jardim”. É ainda a expressão das raízes gullah – a comunidade étnico-cultural descendente dos escravos estabelecidos na Geórgia e na Carolina do Sul – e das religiões afro-caribenhas que se infiltram e resistem nos terrenos mais inférteis e inesperados como o tribunal.
Já Lady Chablis, interpretando a si mesma, é a manifestação máxima da vivacidade que Erzulie Fréda conclama e da criatividade com a qual os protegidos de Erzulie, entre os quais homossexuais e transexuais – os masisi – “vivem a feminilidade e o desejo”. Em sua primeira aparição no filme, Chablis está de luto por Billy Hanson, que descobrimos ter sido seu amigo e namorado de sua ex-colega de quarto. Chorando, ela pede a Kelso que respeite seu lamento antes de lhe dirigir a palavra, e é somente quando recebe um buquê de flores, após uma sessão de hormonização, que decide cooperar. O que Lady Chablis faz desde então, enquanto aliada do nova-iorquino e de sua parceira romântica (Alison Eastwood, a filha de Clint Eastwood) em sua investigação pessoal, é se tornar um ponto focal em constante movimento no marasmo. Numa das cenas mais memoráveis da obra de Eastwood, Chablis chega sem ser convidada à cerimônia de um baile de debutantes da camada negra dos abastados da cidade e dança a uma versão orquestrada de “La bamba”, deslizando pelo salão com um vestido de brocados que envolve seu corpo esguio como uma pele de serpente. Se existe qualquer vestígio de uma “zumbificação” declarada pela crítica por parte dos protagonistas masculinos, ele se perde na exaltação do deslumbramento de Lady Chablis.
Meia-noite no jardim do bem e do mal por vezes parece se comprometer com a cadência e os maneirismos típicos de alguns filmes do fim dos anos 90. John Cusack desempenha um tipo de galã tomado por seus conflitos internos de descrença e falta de amor-próprio, se envolve num romance secundário enquanto Kevin Spacey e Jude Law se apresentam como adereços de alto valor e gosto duvidoso. Mas existe ainda um fator encoberto, que faz com que toda a ambientação do filme mergulhe nas águas turvas do deep south, esse fator é a conciliação entre o habitual e o encantado que só pode ser oferecida pelas caminhadas noturnas, pelo mormaço que expulsa os idosos diretamente para suas cadeiras de palha no alpendre, pelos feitiços de Minerva e as performances de Lady Chablis e pelas forças misteriosas que cobram a verdade do assassino (afinal a arma não foi disparada em legítima defesa) nos seus momentos finais, num plano de beleza barroca dos rostos da vítima e do réu, recém-absolvido, unidos na morte e no sangue no carpete.
Fontes:
DAYAN, Joan. “Erzulie: a women’s history of Haiti”. Research in African Literatures, v. 25, n. 2, p. 5-31, 1994.
TINSLEY, Omise’eke Natasha. Ezili’s mirrors: Imagining Black queer genders. Duke University Press, 2018.
TINSLEY, Omise’eke Natasha. “Songs for Ezili: Vodou epistemologies of (trans) gender”. Feminist Studies, v. 37, n. 2, p. 417-436, 2011.