LES MAITRES FOUS, DE JEAN ROUCH: AS MÁSCARAS AUTÓCTONES DO PODER

por Luiz Soares Jr.

“Le moi profond reste le meilleur des masques antirides”,

Marcel Proust

“Não é necessário contemplar nem as coisas, nem as pessoas; é preciso apenas olhar os espelhos, pois os espelhos só nos mostram as máscaras”

Oscar Wilde, Lady Windermere’s fan.

De quantas máscaras necessitamos para forjar uma civilização? De quantos significantes, flutuantes ou fixos? As lúgubres artes maneiristas (este barroco tardio, abarrotado pela mais-valia luxuosa dos signos, centrado sobre a existência fantasmática da Linguagem), que sempre se nutriram de arquétipos, de máscaras e de espelhos, nos ensinaram que sob todos os seus engenhos suntuosos, e talvez para ocultá-la revelando, subjaz a parte maldita da morte, da feitiçaria, da guerra; e o que foi a parte maldita, segundo a pena de um de seus virtuais cultores, Georges Bataille? “(…) de todos os luxos concebíveis, a morte, sob sua forma fatal e inexorável, é certamente a mais cara”; professor no Colégio de Sociologia de França, que segundo Carlo Ginzburg legou à civilização europeia um condensado dialético e patético de arquétipos que talvez melhor do que ninguém soube entender a influência do movimento neo-mitológico do nazismo, de que Dumézil foi o teórico mais impecável, sobre a juventude alemã, a oferta perversa de Origem de que os jovens necessitavam para soerguer uma nova Nação, alimentada pelo caos dos primórdios; no seio da Kultur mais refinada pelo exercício da arte erudita, da eminência das Letas clássicas, etc- do cerne da mais vetusta e nobre civilização surgiu o caos, o terror, a abominação, talvez um uso doente para um excesso de força sem sublimação possível; mas de tudo, para falar da obra-prima Les maitres fous, eu retenho o trecho sobre a parte maldita, e acrescento o do homo sacer (O homem sagrado); o que secretam as eminências pardas da administração, do capital, etc, quando submetidas a um rito in extremis, cujo brasão é o sangue sacrificial?

O que revela, propriamente, dos baixios da produção e do exercício do poder, seus emblemas, suas entranhas e mises en scènes, seus signos heráldicos e representações? Em Os mestres loucos, Rouch escreveu um pré-texto para proteger a sensibilidade um tanto histérica do europeu médio que assistiria o filme em Veneza: as cenas cruéis descritas aqui são antes de tudo o reflexo da violência de nossa civilização: as máscaras autóctones da civilização ocidental são ritualizadas segundo um princípio cinematográfico de vinheta clínica, de campo e contracampo expeditos, de cotejo diacrítico entre a representação oficial (de que Rouch nos oferece um trecho particularmente litúrgico, cerimonial: o batismo de um exército pelo rei) e a oficiosa da pulsão a serviço do sagrado; mas de que sagrado se trata? De um sagrado historicizado pela distribuição de papéis e de funções, de um complexo teatral que deve segundo o espírito o seu constructo antropomórfico e antropofágico à obra-prima mascarada Os negros, de Jean Genet. Muito se falou da natureza coetânea da parte maldita energética com a mais-valia do capital; em Les maitres fous, toda a suntuosidade deste desperdício libidinal está a serviço da cena, agora pública e gregária, do fantasma de um povo. Antropólogo Rouch sempre foi, como nos mostram estas vinhetas precisamente clínicas onde os gestos idiossincráticos de cada função – política, econômica, fantasmática – se expõem numa vitrine de arquétipos incrustados no bronze. 

Mas em Les maitres fous Rouch também se torna um estudioso de antropofagia: as realezas, os administradores, as madames e monsieurs autóctones reproduzem retroalimentando (ou consomem ultrapassando, segundo a fórmula hegeliana da suprassunção dialética) o arquétipo ancestral com seu arquétipo tópico, histórico, econômico, segundo seu zeitgeist epocal; o gênio somático, infra-estrutural de Os mestres loucos é sua dimensão clínica, seu relato límpido, sua impassibilidade de diagnóstico na descrição objetiva dos ritos demoníacos (aqui entendido como obra do inconsciente, bem entendido).

O seu gênio espiritual, superestrutural é fazê-lo a serviço de uma antropologia que deve tanto à natureza quanto à História os seus cerimoniais possessos de Trans-História; uma coisa é indispensável à outra, como a dicção e ao dedo em riste autofágico para o Gestus brechtiano, que cita a si mesmo no processo da enunciação. Um tanto como o Brecht das peças paradidáticas , mas também como Pérrault, Artaud e Genet e Bataille, Rouch nos oferece o romanesco do rito, sua conversa infinita (segundo Blanchot) e num mesmo movimento a objetiva segundo um Codex de mapa e de terapia psicanalítica (inútil lembrar da noção de inconsciente coletivo de Jung, é claro) que deve tudo ao teatro da crueldade e ao colégio de sociologia batailliano; nós aprendemos à fórceps com a expedição de registro de caso paradigmático da découpage de Os mestres loucos que o registro do inconsciente deve se debruçar sobre o rito como forma de presentificação do arquétipo de que é depositário; mas também que não há inconsciente sem linguagem, sem teatro e sem cinema, sem uma codificação visível, evidente, supra-vidente do invisível da pulsão; numa alternância que tem muito de revelação e de exorcismo, Rouch nos mostra os mesmos personagens pós-possessão, empenhados no trabalho cotidiano como em uma nova máscara, apenas em aparência transparente à carne como ao papel desempenhado no sistema descrito.

O Logos da voz off, que nos descreve o sentido de cada máscara e seu uso (o uso do fogo, o porque do sacrifício do cachorro, a relevância do papel em particular para a economia da totalidade do constructo mítico) é um Logos que não anula ou ultrapassa, mas se sobrepõe ao Logos do rito descrito em pormenor de vilegiatura; como no episódio Gare du Nord, em que se serve da catarse surrealista de intrusão do acaso num universo consuetudinário documental para revelar o invisível corrosivo dos afetos no homem de todos os dias (e não apenas no monstro elizabetano, por exemplo), o Rouch de Os mestres loucos se serve do registro antropológico para efetivar uma antropofagia espiritual, em que uma cultura devora a outra para revelar seus interditos recíprocos, ou, como está no texto de apresentação, “(…) esta história é o reflexo da violência de nossa civilização”: os mestres loucos se mascaram para tirar a máscara (do ocidente), como a máscara com que agora agem e são acionados pertence às cabeças coroadas do ocidente; um se torna o espelho anfractuoso do outro, a face ignota que, de sobreaviso para com o “escândalo mimético” da dita regressão à animalidade à vista,  recusamos a ver no espelho do rito oficial.

Se há violência e mesmo crueldade em Os mestres loucos, não se trata de nos advertir segundo as categorias vistas como opositivas da civilização e da barbárie: o Logos e a legitimidade ritualística, os codex e exceções daquela civilização, no  estágio simbólico-sacrificial em que se encontra, são tão lídimos, legítimos e justos quanto os nossos códigos e infrações: a voz off é um logos superposto ao logos do gesto mítico, e não oposto; é relevante afirmar ainda e sempre a soberania da pesquisa antropológica em Rouch (mesmo e sobretudo quando tem como objeto o imemorial, o mítico e o arquetípico, aqui dobrado pela idiossincracia de receber sua ressonância mítica do estado histórico, epocal em que o filme se encontrava quando registrou esta outra História, este mito ou seita secretos aqui revelados à luz de révelateur do cinema), porque no Rouch de Os mestres loucos e Petit à petit, por exemplo, o olhar do ocidente jamais se destaca sobranceiro sobre o objeto antropológico estudado: trata-se sempre de uma alteridade que reencontra o mesmo de uma secreta origem, uma parte de mim não desenvolvida ou extirpada segundo o fórceps da violência dialética secularizada do logos triunfante de luz: a seita dos Hauka, composta por jovens trabalhadores possuídos pelas forças arquetípicas coloniais inglesas, é uma parte de nossa História secreta, e secreta enquanto tal toda a insidiosa parte maldita necessária para semear a colonização, sua violência sempiterna; desconhecer esta violência ou sobrepuja-la com artigos de sublime de atacado só nos vai converter em objetos privilegiados de sua ominosa potência, como o nazismo, aberração nascida e nutrida pelo berço mais refinado da civilização europeia, pôde bem revelar; obra-prima sobre o Segredo de uma civilização e seus arcanos, Os mestres loucos é um filme macumbeiro que se debruça sobre a transfiguração da imanência com os meios da própria imanência, e é daquelas obras que justificam e suscitam, com sua representação de um universo anti-essencialista (o arquétipo historicizado, outro) o que vai ser o programa mais elementarmente revelador da modernidade no cinema, do Godard maoísta à Paris-labiríntica de Rivette, destinação a princípio idiossincrática em matéria de cenário e dispositivo mas que, se estudada com atenção, pode vir a nos descobrir aspectos pouco explorados da genealogia como arte de desvelamento ou atualização do possível que nos espreita desde as origens. 

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