por Gabriel Papaléo
“Without the proper type of music, your program will be more difficult than need be. You know, it is said “music soothers the savage beast”, and what is called man is very anarchy-minded at present.”
Sun Ra, em sua carta de intenção para uma vaga de astronauta na NASA.
As luzes do espaço e o sacolejar da nave quebrada, digna de um filme B de ficção-científica dos anos 50 como O Homem do Planeta X, irrompem o espaço sideral para cair em terras estadunidenses. Dentro, um confuso passageiro; a chegada dele, do Irmão, é pela ilha Ellis, o ponto da chegada na cidade de Nova York utilizado por tantos imigrantes ao longo dos séculos – iconográfico imortalizado tantas vezes no cinema norte-americano, desde Poderoso Chefão parte 2 até A Imigrante de James Gray. O diretor John Sayles já deixa claro desde esse princípio que o seu apreço não é pela sutileza, e sim pelo desconcerto das castas sociais, pelo potencial absurdo disso. Não são poucos os momentos bem-humorados de O Irmão que Veio de Outro Planeta, mas o cineasta prefere registrar esse prólogo sob a tensão do abandono.
O protagonista vivido por Joe Morton, ator magnífico aqui trabalhando com as limitações de um personagem silencioso, já exibe sua abrangente linguagem corporal nesse prólogo: o corpo cansado do Irmão cai na Terra, e manca sem um dos seus pés, mutilado sem maiores explicações. Cambaleando pela metrópole na madrugada, encontra ambientes vazios, soturnos, iluminados apenas pela difusão da noite. Ao se ver num espaço marginalizado, inteiramente vazio e decadente, o Irmão chora sozinho. A cidade é lugar de abandono, e aquele silencioso nascer do dia perdura até os motores começarem a funcionar, até os trabalhadores começarem a ocupá-la. O choque imagético e sonoro proposto por Sayles nessa marcha diurna do trabalho já dá todo o contexto emocional do arco narrativo do Irmão: no coro da cidade, ele precisa se encontrar.
O pé mutilado do Irmão no início do filme, que eventualmente cresce depois, nunca é explicado em texto, mas ao contar ao menininho no museu que fora escravo em seu planeta, tal qual aqueles homens e mulheres retratados nos quadros, subjulgados pelo respectivo presente de cada um em um país de práticas trabalhistas nojentas, se intui que a violência que a sobrevivência cobrou ao Irmão ganha seu limite contra seu próprio corpo. A relação do protagonista com dor é singular, quase de inevitabilidade diante da opressão, e o único antídoto disso é o senso de comunidade que ele encontra ocasionalmente na Terra.
Um muçulmano surge diante do Irmão desorientado pelas ruas para tentar converte-lo, e pouco tempo depois o protagonista vê a figura de Cristo crucificado diante de uma revista policial a um homem negro. Esse sincretismo de signos, que mais a frente ganha contornos perigosos e críticos de representação de imagem, encontra diálogo justamente com o ponto levantado por Bernardo Oliveira no editorial dessa edição: a macumba, em seu uso contemporâneo, é essa reunião de signos e ritos, uma prática agregadora e ao mesmo tempo específica, muito pertinente em dar conta das contradições das crenças religiosas. No Harlem retratado aqui, uma coreana chama a polícia para defender sua loja do suposto roubo do protagonista; o dono do bar, negro, diz que não vai ao restaurante chinês porque só come o que “sabe pronunciar.”; um dos clientes fala das doenças que haitianos passam, etc. Sayles reserva a caricatura e o discurso direto apenas aos brancos, sem tentativas de conciliação, os retratando como os policiais, o par perdido no bairro, o chefe escroto do fliperama, os agentes fascistas extra-dimensionais.
Numa das melhores cenas do filme, um mágico amador fala rápido com o Irmão enquanto apresenta um truque de cartas. No final do truque, ele diz que fará todos os brancos desaparecer do metrô. É quando a estação chega, todos os brancos saem, e ficam apenas os negros, a caminho do Harlem – porque a cidade separa literalmente as classes e as etnias, e no capitalismo comportamento e cultura também são barreiras físicas prontas para ser violentamente assimiladas. É um ótimo momento, bem humorado na sua sátira – como é a cena seguinte, dos dois brancos turistas perdidos no Harlem – porque sublinha essa distância, e faz com que o protagonista entenda melhor a importância do trânsito e do lugar onde se baseia. Em uma das inúmeras cenas no bar, um dos clientes fala das glórias passadas do Harlem, que lá é “o fim da linha.” O lugar onde se cresce e se vive de alguma forma sempre será o acerto de contas de alguém, e quando se sente a verdadeira história de um povo na comunidade, na cultura e nos costumes, fica quase inevitável brigar pela convivência e ocupação daquele espaço que o status quo e a gentrificação tentam engolir.
Lugar de segregação geográfica é também o lugar de oportunidade do Estado de exercer sua máquina de guerra – como quem mora nas favelas do Rio, por exemplo, sabe muito bem. Logo no início do filme, quando o Irmão ainda está encontrando a cidade, ele tenta comer na vendinha da coreana que citei anteriormente, e é logo perseguido por um policial. É aí que Sayles sublinha sua discussão de repetições de iconográficos: imediatamente o Irmão percebe que o policial é representante da violência, com a câmera dando um zoom rápido subjetivo dele percebendo o distintivo; é como se signos da polícia e do fascismo fossem reconhecíveis em qualquer lugar da galáxia, por qualquer ser, dessa dimensão ou não. Tudo passa pela herança de memórias de opressão, e do que é feito para esmagá-la.
É muito oportuno o poder do Irmão de sentir violências passadas guardadas nos objetos que toca, como se acessasse uma memória coletiva de agressividade e racismo manifestada fisicamente, mecanismo de defesa intuitivo como reflexo direto do histórico de opressão, algo nem ao menos simbólico ou metafórico – já que é o mesmíssimo procedimento de desconfiança dos oprimidos diante dos opressores como forma de sobrevivência, apenas sob a via do fantástico para exacerba-lo.
Esse viés fantástico da comunidade que pelos hábitos encara suas dores ancestrais aproxima o filme de Space is the Place, improvisação filmada de Sun Ra pelo diretor John Coney – outra ficção-científica que trata de afrofuturismo para falar da própria época, 10 anos antes. Diferente de Space is the Place, o outro mundo, a outra dimensão, não é a utopia do afrofuturismo; é no entanto a distopia impessoal representada pelos dois caçadores brancos vestidos de preto. Toda a efervescência cultural de projeto político – e portanto estético – de Sun Ra e sua arkestra lidam com as possibilidades visuais de se expressar de alguma forma, diante dessa dimensão fantasma que encontraram na Terra.
O sequestro final de Sun Ra, no final do filme de Coney, junto à fuga posterior, exemplifica esse espectro oposto; a música como alternativa do diálogo, e como alternativa da bomba, igualmente terrorista em nome da revolução. Uma religião riquíssima e complexa abre um portal fantástico, metafísico, para que seu líder e maestro possa conduzi-los ao futuro. Não cabe a esses personagens o exílio; já para o Irmão, a cidade é a saída, e encontrar no final um grupo de exilados, fugidos da opressão como ele, é a via de enfrentamento que coube a esses alienígenas.
Na figura coletiva quase sobrenatural, quase de um oculto religioso, o filme não encara como um dilema propriamente metafísico, mas sim sociocultural – está impresso nos ícones religiosos das ruas, no Cristo acorrentado aproximado do homem negro revistado pela polícia que citei anteriormente. Quando Sayles filma sob a ideia do transe e do fluxo, é ao filmar o Irmão descobrindo os efeitos das drogas na população expatriada do Harlem, satirizando e comentando a caricatura do “vodu” transformado em signo fantástico no cinema americano. A trama do protagonista indo procurar a origem das drogas dali descamba num alto prédio corporativo, revelando ali que quem lucra com o tráfico e a subsequente morte negra é um empresário branco que vê naquilo só um fluxo de caixa; que essa seja a preocupação narrativa de Sayles no terceiro ato sublinha essa visão distorcida dos ritos e ferramentas de comunidade afro-americanas pela elite financeira branca, cuja distância não é apenas em ritos, em cosmogonia, em práticas e relações – mas também de imagem, e de como ela é representada. Não que Sayles comente frontalmente sobre o que representa politicamente um cineasta branco complicar o retrato insuficiente e frequentemente desrespeitoso da diversidade individual e coletiva de religiões de matriz africana no cinema americano, pelo menos não como Lucio Fulci em seu Zombi por exemplo, mas é um comentário a mais no seu interesse pela tapeçaria social da cidade – que irá terminar no Irmão encontrando outros expatriados, para aí ter a possibilidade de fundar o futuro.
E o presente e o futuro dos homens e mulheres negros aqui retratados está situada na conversa dos habitantes do bairro, no senso de comunidade, da História compartilhada e dos costumes diários, da classe trabalhadora que se reconhece e que se imprime nas características geográficas de Nova York para provar que a cidade é feita pelos imigrantes. Não por acaso, em dado momento o homem do fliperama fala que “metade da cidade não tem visto.”
A revelação dos outros imigrantes interplanetários é sugerida através de sinais ao longo do filme, de rimas sonoras e figuras nas paredes, como se existisse um código desconhecido nas ruas. A cidade guarda esses segredos, e qualquer um que vive em uma metrópole como Nova York (ou o Rio) olha para as pichações nas paredes e sabe que essa comunicação é o que faz da cidade o que ela é, esse lugar de expressão que não cessa e não abaixa a cabeça para autoridades higienistas. É um comentário muito direto sobre a política fascista de higienização de Nova York, mas serve como ideia geral para metrópoles que a comunicação do Estado de direita é uma comunicação de exclusão, e que é nas frestas que reside a sobrevivência.
“O Harlem joga o melhor basquete do país”, o letreiro na parede diz no último plano. O Irmão que agora sabe onde está e para onde vai entende que não existe retorno à casa se a casa é dominada pelos opressores. O que há é a cidade, nova morada, do trânsito dos imigrantes que trabalham dia a dia, que construíram o país, e que se organizam para transformar o lugar que lhes é de direito.