Poeta (Darezhan Omirbayev, 2022)

Por Rubens Fabricio Anzolin

Conquistar o mundo

A primeira imagem de Poeta (Darezhan Omirbayev, 2022) já é capaz de encontrar uma metonímia plausível para aquilo que busca o filme: sentado em uma pequena mesa, na cozinha de sua casa, Didar escreve os versos iniciais do dia, meditando com a caneta na mão frente ao sol que vagarosamente conquista todas as paredes da morada. Ao seu lado, milimetricamente pendurada, está a foto de um homem a brigar com a natureza. A imagem é indefinida, mas seu conceito concerne um significado mais amplo. Tal qual Didar, o poeta, o sujeito da foto também parece afrontar o mundo, determinado a fazer permanecer na terra as poucas árvores que estão prestes a alçar vôo.

Antes de mais nada, é preciso que se entenda dois procedimentos recorrentes na estilística de Omirbayev, cineasta cazaque ainda pouco conhecido no Brasil. Um primeiro diz respeito a uma herança clara e declarada do realizador para com o cinema de Robert Bresson. Mais que isso, trata-se de uma tentativa de emular em seus atores uma espécie de modelo escultural, cujos movimentos são comprimidos única e exclusivamente a uma naturalidade mínima, quase metódica, privilegiando uma encenação objetiva frente à câmera quase sempre fixa. O outro procedimento fundamental no cinema de Omirbayev – e que, nesse caso, trata-se muito menos de um procedimento em si e muito mais de um conceito mestre que guia suas obras – é um rigor formal absoluto, uma consciência de que muito antes do “o que” contar vem o “como” contar.

É nesse sentido que Poeta, por mais particular que seja em sua temática, não é um filme tão distinto dos outros já feitos por seu realizador. De forma ou outra, Omirbayev sempre foi um cineasta que escolheu pôr em cheque os dilemas da criação, aplicando aos personagens mais novos uma consciência basilar, que antes de mais nada visualiza na arte o ponto final de suas trajetórias. Vem daí os dilemas que atravessam o personagem de Didar em Poeta: eis um escritor bem-sucedido, rodeado por pilhas de livros em casa, mas que pouco a pouco vê o mundo moderno tomar conta de sua erudição aparente. A mãe do protagonista deixa sua casa após ver a neta deixar-se levar pelo videogame, reencontra seu ex-colega da faculdade (segundo ele, o melhor da classe de literatura) e descobre que agora o sujeito toca um café no centro da cidade, fazendo da poesia que um dia regeu sua vida um mero adereço estampado nas paredes do estabelecimento.

Em dado momento, o filme de Omirbayev materializa esse conflito de Didar de forma clara: o escritor recebe a oferta de escrever a biografia dos antepassados de um construtor milionário. Em troca, receberia uma quantia inestimável de dinheiro, capaz de fazer com que Didar pudesse trocar os pares surrados de sapatos por modelos novos, além de poder realizar seu desejo consumista de enfim largar o flaneurie das ruas pela segurança dos carros conversíveis. E é justamente nesse momento que Poeta encontra sua maior força, e o protagonista enfim restabelece sua fé no gesto literário através de mínimas consequências da trama. Omirbayev conta que este filme surgiu como uma anedota, inspirada em um relato de Herman Hesse, lendário escritor germânico, de quando o mesmo fora até o interior da Alemanha para fazer uma leitura destinada à população da cidade e, para sua surpresa, ninguém apareceu para prestigiá-lo. O mesmo se dá com Didar, quando, no centro da trama de Poeta, ele viaja ao interior do Cazaquistão e encontra apenas uma universitária russa, aguardando sua presença. É, no entanto, através desse pequeno gesto narrativo, que Omirbayev alcança o ponto final de seu dilema. Da mesma forma que o sujeito da foto que abre o filme, a menina que estava lá para ouvir Didar possui a força de estancar o mundo. É como se, ali, por um pequeno momento, o homem da foto estivesse vencendo a natureza, como se a poesia estivesse vencendo a tecnologia, como se os poetas estampados na parede do café do amigo de Didar não fossem meros adereços, e, sim, uma memória viva, palpável, madura.

Não há muito o que se possa dizer de Poeta que não passe ao largo dessas questões conceituais, mas sobretudo é importante que se compreenda que a forma mínima e direta com que Darezhan Omirbayev é capaz de encarar o mundo através de lentos e pequenos planos, dão conta de uma estilística bastante particular. Não há nada em Poeta que não seja cristalino. Da narrativa central até a história que cruza o longa, sobre o túmulo do grande poeta cazaque Markhembet. Tudo está ali pois é assim que se pretende. E, conforme a luz que conquista as paredes da casa, o homem da foto que conquista o mundo, a universitária solitária que conquista o resiliência de Didar, Darezhan Omirbayev nos conquista pouco a pouco com seu cinema, até onde ele possa sobreviver.

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