Olhar de Cinema: Soy Libre

Por Rubens Anzolin

Marginal alado

O conceito de “liberdade” que Soy Libre (Laure Portier, 2021) carrega como empréstimo no título do filme não diz respeito a uma complexidade social acadêmica. Daí um primeiro engano, já que Soy Libre não é sobre essa ideia de liberdade como significado, mas como experiência. Laure Portier filmou seu irmão Arnaud desde o início da vida adulta até os dias de hoje, a partir do momento em que notou que alguma espécie de turning point se aproximava na vida do irmão. Quando conhecemos Arnaud, percebemos também que ele não é um sujeito afeito à câmera, não por desacreditar naquilo que as imagens da irmã podem significar, mas sobretudo por não se querer preso a um registro, a uma tipificação barata. “Isso não significa nada”, diz Arnaud em determinado momento, “Olhe o que está ao seu redor”, completa o garoto.

Soy Libre é um jogo de fricções que se encontra entre esses dois extremos, um que se acorrenta à vida real, da natureza, dos músculos, da pixação, e outro que somente se manifesta através da ideia do vídeo, do pensamento cinematográfico. Os motivos pelos quais Laure decide filmar o irmão nunca são ditos exatamente, apesar desse questionamento surgir em tela com certa frequência. Num sentido mais amplo, nem mesmo a cineasta parece dar devida importância a tal provocação, visto que seu objeto principal nunca foi outro senão a captura do tal “espírito livre” do irmão, dessa liberdade que não necessariamente diz respeito a um conceito metafórico mas sobretudo a uma guerra constante que o personagem trava contra o mundo. “Encarar os problemas de frente”, diz Arnaud, é para isso que trabalha.

Entre idas e vindas, vemos esse conflito do personagem para com o mundo se esticar cada vez mais. Arnaud é um sujeito raivoso, inadaptável, um vagante. Sai da cadeia da França em direção à Espanha. Dorme na rua, come com as mãos, furta o supermercado. À noite, sozinho, dormindo na rua, quando tenta atravessar a fronteira, Arnaud conta que não se sente feliz nem triste, sente-se normal. Isto é, para o personagem, o mundo da contracultura representa o banal, esse não-lugar é aquilo que considera sua casa. O grande segredo de Soy Libre está justamente nesse ponto onde Laure Portier e o montador Xavier Sirven entendem a importância da montagem para justificar esse embate de Arnaud contra o modus operandi da vida real. Ou seja, importa menos o que Nano (como é carinhosamente apelidade pela irmã) sente – aquilo que diz frente à câmera, sempre encabulado – do que cada um dos pequenos gestos que o ressignificam. Da raiva descomunal que carrega no corpo até os exercícios de bíceps que faz para acoplar tantos sentimentos em um corpo insatisfeito.

Soy Libre é um exercício de vida, de prender e esticar, de deixar-se levar e prender-se nesse personagem que, no fim das contas, nunca quer de fato ser registrado. Aos poucos, o filme de Portier é capaz de dizer muito sobre o espaço que rodeia estes personagens, sobre as políticas públicas que regeram a vida destes sujeitos, e mais que tudo, sobre como o passado maternal afeta suas vidas até hoje. Sobra, dessa experiência menos teórica e bem mais filantrópica, a companhia deste personagem abstrato, arredio, descontrolado. Até o momento em que Arnaud encontra sua avó, acamada, pela hora da morte. É aí que tudo em Soy Libre descamba de uma experiência marginal para descortinar por fim o segredo de seu personagem. Ante à virilidade de um menino que cresceu sem pais e atrás das grades, há ainda uma vida que se quer ser vivida, que foge de lugar em lugar justamente para tentar lograr um novo renascer a cada dia. Um presente que o fim do filme nos dá de maneira solene, não mais na imagem de Arnaud, mas na voz tranquila do brutamontes que agora descobre que vai ser pai.

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