Passeio com os curtas do Olhar de Cinema

Por Rubens Fabricio Anzolin

Passeio com os curtas (Outros Olhares)

Acredito no risco. É sempre melhor passear com filmes do que tentar levá-los a algum lugar previamente calculado, independente das consequências. Cinema é coisa que se mexe, arte do deixar-se ir. E, portanto, seria um desserviço ativar certos filmes antes mesmo que eles nos ativem. Acredito no movimento – logo, acredito no cinema. É daí que nasce o título deste texto: passeio com os curtas. Não sobre, não diante, não frente a eles. Com. Em seus riscos e comodidades. Cavalgar pelo labirinto que os filmes abrem.

Outro adendo que considero importante: por que os curtas? Bom, a mim parecem sempre a parte mais fundamental de qualquer festival de cinema. É o espaço mais aberto para os sonhos, ruídos e experimentos. Justamente por ser um formato em que as amarras narrativas muitas vezes não se impõem, ou seja, uma modalidade quase incapaz de oferecer o esgotamento (narrativo, teórico, estético). Enxuga-se o tempo e ressalta-se a forma. Cinema total. Ou algo próximo a isso.

Pois bem, aos filmes.

A intempérie (Daniel Paz Mireles, 2022)

Trata-se sobretudo de uma obra cujo apelo é total. Conhecemos Bélen, personagem principal, logo de cara, e a sua voz é que perseguiremos durante toda a duração. A intempérie funciona ora como metonímia à condição de vida da personagem (com filha pequena, preste a ser despejada de casa) ora como fundamentação visual aquilo que a personagem transmite. A estrutura do filme é similar a de um diário de bordo – enquanto caminha pelos corredores escuros, com velas na mão, praticando seus próprios rituais, Bélen narra o desespero através da voz, no fora de campo.

Mireles pratica um esforço considerável para tentar ajustar esses tempos e espaços deslocados, operando a voz da personagem como um guia desconexo de sensações, dúvidas e sentimentos através dos movimentos de seu corpo. Ao fim do passeio, o que resta é a sensação de que este é muito mais um filme tese do que um filme síntese. Nem a inércia, nem a revolução. Uma revoada sombria incapaz de conjugar qualquer assertividade acerca do delírio que se propõe.

Cinzas digitais (Bruno Christofoletti Barrenha, 2022)

De todos os filmes da sessão Outros Olhares, este talvez seja o mais difícil de se encarar com certa frieza. Explico. É sempre complexo lidar com obras cuja força provém de um campo exterior incontornável. Nesse caso, falamos dos incêndios ocorridos na Cinemateca Brasileira (entre 1957 e 2021, já foram cinco). O movimento de Barrenha me parece, aqui, um bocado comum, que é o de lidar com a memória daquilo que se vai (e que tem-se ido cada dia mais). É uma tragédia que se estabelece antes de tudo no campo histórico, e que só vai tornar-se propriedade estética à medida em que o cineasta emula fotogramas velhos que se esfacelam (queimam, melhor dizer) pouco a pouco.  

Os dados informativos sobre o evento de cada um dos incêndios sofridos pelo maior acervo cinematográfico brasileiro, exibidos ao fim da projeção, parecem reiterar esse desejo cronográfico que antecede a aventura formal. Há um momento ímpar no filme, em que surge em tela uma cartela com a seguinte frase: “infelizmente este negativo se perdeu”. A partir dessa quebra, o cineasta fabrica uma espécie de montagem de choque, em que as palavras (sobretudo “infelizmente” e “perdeu”) pululam na tela para que, justapostas, sejam capazes de impulsionar seu significado primeiro: cinema = memória. Coisa que a própria obra, a partir daí, reitera, quando o que entra em cena deixa de ser uma de metalinguagem da destruição (os fotogramas a incendiarem) para tornar-se uma metalinguagem da construção (um documentário, no que parece uma espécie de VHS, sobre o papel formador da cinemateca brasileira). São três tomos distintos, em que cada um deles parece construir um movimento curioso, o de iniciar no caos (nas ruínas do acervo, da forma cinematográfica) até que se encontre uma espécie de redenção.

Ainda que solene, Cinzas digitais parece carecer de alguma amarra formal suficientemente aguçada para dar cabo a tantas tensões e faíscas que as próprias imagens e películas em questão carregam. Isto é, exige-se algum movimento suficientemente brusco (entre os tantos choques trabalhados) para que o filme em si possa suceder-se a pleno, sem depender de qualquer caráter cronológico anterior. Mais do que pavimentar o tabuleiro da História, é preciso saber bagunçá-lo. Cinzas digitais mostra-se um exercício interessante, mesmo que não consigo deixar de pensar no que um cineasta como Carlos Adriano, por exemplo, faria com essa espécie de material.

Garotos Ingleses (Marcus Curvelo, 2022)

Era o filme que mais queria ver nesta edição do Olhar de Cinema. De alguns anos para cá, Marcus Curvelo tornou-se uma das vozes mais distintas do cinema brasileiro. Seus trabalhos parecem fincar uma estaca definitiva naquilo que chamamos de cinema caseiro – um homem, uma câmera, seus amigos e o espaço infindável da criatividade que esse processo mínimo pode oferecer. De Não Estou Aqui (2012) a Qual É A Grandeza? (2022), os self characters de Curvelo foram se transformando, numa elipse de desolação, desilusão e destruição que toma como base as agruras dos jovens vulneráveis do Brasil. Curvelo é um cineasta da estirpe de Keaton e Chaplin. Seu Joder (personagem autobiográfico) toma as bases do fracasso de um verdadeiro Carlitos. Curvelo é um péssimo ator, e isso o transforma ligeiramente no melhor ator possível para encarnar seus personagens, porque é diante deste contexto que a figura esguia do rapaz, meio encabulada frente à câmera, dá vida a uma espécie de pudor do homem comum. Do brasileiro médio, fodido. Vida real como todos nós.

Garotos Ingleses dá continuidade a uma fase que julgo nova em seu cinema, que constantemente vem acompanhada da figura de seu colaborador, Murilo Sampaio. É uma espécie de ressignificação da desgraça que encontra mais que nunca o caminho derradeiro da melancolia. A Destruição do Planeta Live (2021) e Qual É A Grandeza? (2022) são as peças mais desafiadoras de sua filmografia, pois colocam em cheque o pessimismo para atingir uma desilusão mais simbólica, um fim de mundo concreto, cujo formalismo caseiro é capaz de se reinventar ainda mais. Garotos Ingleses faz parte dessa mesma lógica de cinema, que acompanha os últimos filmes do cineasta. No entanto, é como se o discurso do riso pelo choro (tão caro a obra de Curvelo) encontrasse aqui  uma resolução mais morosa, em que nem sempre o gesto formal é capaz de dar cabo a inquietações tão curiosas propostas pela obra.

Na trama, os dois rapazes (Sampaio e Curvelo) vão até o cemitério dos Ingleses, na Bahia, tentando descobrir se ambos possuem um “lugar de direito” para morrer entre os “nobres” ancestrais daquela terra. Como sempre, alguns gestos poéticos são levados a cabo (o mais engraçado deles, me parece, ocorre no início do filme, quando cada um dos personagens descreve sua porcentagem de ancestralidade, viajando em um barco à procura do tal local). É nesse sentido que Garotos Ingleses soa um tanto morno dentro de mim, pois ainda que se trate de uma obra acima da média dentro do que o cinema brasileiro produz hoje, não consegue dar plenamente conta de seguir atualizando essa relação fundamental do cinema de Curvelo, que é a sobreposição da invenção formal arraigada a um discurso ácido, doloroso de tão real. Bom filme, ainda que menos catártico que os anteriores.

Mais e Mais Distante (Polen Ly, 2021)

É a peça mais legível da sessão de curtas. Exibido na competição da Berlinale Shorts, o filme de Polen Ly compõem todos os códigos possíveis do cinema de arte contemporâneo. Da busca da ancestralidade aos planos estáticos que perseguem os personagens. Há pouco que se possa dizer sobre Mais e Mais Distante. Um casal de irmãos busca fugir de sua aldeia para encontrar a cidade grande, as possibilidades de trabalho e uma vida mais justa. Antes de partir, é preciso dar adeus aos mortos (seus pais), e visitar mais uma vez o local em que foram enterrados. À medida que o tempo passa, os protagonistas do filme se afastam, se contradizem, se intercalam dentro de um vazio interior composto por crenças particulares. Não há dúvida, desvio ou aventura. Não há o tal passeio que citei anteriormente neste texto. Mais e mais distante segue à risca os códigos de composição cinematográfica contemporâneos, e desemboca no mesmo gesto inerte que seus pares.

Sonata Plástica (Nelson Yeo, 2022)

É o melhor filme da sessão. E um dos melhores filmes do festival. Meio esmaecido frente a obras mais comentadas, Sonata Plástica é um elogio à inventividade. Uma peça de tapeçaria muito bem modulada entre as intrigas do distanciamento social e o reflexo do afastamento familiar. Acompanhamos o dia a dia de três pessoas, uma garota que encontra-se com a namorada em um terraço aberto, um diretor de cinema que conduz um comercial anti-tabagismo e uma mulher que sai para buscar o jantar da família desacostumada a vestir seu salto alto. Entre desvios e dúvidas, Nelson Yeo propõe um cinema da desconexão, em que cada um dos personagens atinge o pico máximo da desilusão, sublimados a uma vida de delírio longe das amarras de casa. Antes do gesto formal agudo, bem demarcado, Yeo propõe-se a pensar as relações pandêmicas através de um remix de corpos. Há dança, há paixão, há desejo e há o vício. No fim, cada um deles se encontra para comungar ao término do dia, revelando ao cabo a máxima de que é nas masmorras do lar que se escondem todos os anseios e segredos.

O passeio acabou, resta agora lidar com o apagar das luzes.

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