por Lucas Saturnino
“«How clearly I have seen my condition, yet how childishly I have acted», says Goethe’s sorrowful young Werther. «How clearly I still see it, and yet show no sign of improvement». […] Note that here, as elsewhere, seeing clearly seems to take Werther, and us, no further.” (Maggie Nelson, Bluets)
I.
Em primeira ou última instância, a questão da representação se refere à pedagogia do fazer as coisas visíveis. Consideremos o debate acerca do realismo: Brecht argumenta que a simples reprodução da realidade não nos diria nada sobre a realidade em si — por exemplo, fotografias das instalações de empresas como a Krupp (armamentos) e a AEG (equipamentos elétricos) quase nada revelariam quanto ao caráter dessas instituições (ele está aludindo ao papel da indústria na remilitarização alemã), de forma que a verdadeira realidade teria resvalado para o plano do funcional. Pois estendamos a mesma suspeição aos avatares virtuais através dos quais hoje performamos a exposição de uma identidade — a realidade também não é apreendida só por via daquilo que foi articulado visando à comunicação interpessoal. Se Brecht abordava a reificação das relações humanas, desde que a virtualização de si assumiu entre nós a condição de processo ritual de subjetivação — a ponto de ser secundário o grau de consciência nisso —, a reificação das identidades passou a estar em causa de maneira análoga: o perfil digital por meio do qual alguém se manifesta exteriormente enquanto pessoa não é indicativo inequívoco de realidade — que se encontra, em sua essência, incrustada no plano subjacente do psicossocial.
Em Fuck Anyone Who’s Not a Sea Blob (episódio especial da série Euphoria, de 2021), acompanhamos uma sessão de terapia da personagem Jules (a atriz Hunter Schafer, que a interpreta, também coescreveu o capítulo). Ela se pergunta: será que não teria passado a vida toda construindo seu corpo, sua personalidade e sua alma em torno do que achava ser desejável pelo sexo masculino? A psicóloga rebate: “Você acredita mesmo que a sua existência, física e emocionalmente, é tão reativa assim? Que não estou vendo e falando com a Jules? Mas com um avatar que ela criou como reação ao mundo?”. Eu estou aqui, Jules responde — entretanto, “o que você está vendo são as milhões de camadas que fui apanhando e retendo ao longo da vida, tomando tudo de outras pessoas, e constatar isso é aterrorizante”. Ela, mulher trans, confessa sua angústia: tinha feito tanto esforço a fim de “conquistar a feminilidade” (até assim incorporar a imagem que desejava transmitir) para sentir que afinal foi a feminilidade a conquistá-la. Jules fala da sensação extenuante que o escrutínio incessante dos olhares femininos lhe provoca — e do modo como isso a induz igualmente a pautar sua feminilidade pela antecipação da apreciação alheia.
O reflexo pessoal de se ir autocondicionando em função da percepção dos outros talvez não seja necessariamente instintivo — e decerto não é com a centralidade psicodinâmica da atualidade. Para uma pedagogia das imagens propícia à era da sociabilidade virtual, a repercussão psicossocial motivada pela massificação delas precisa ser enquadrada como componente primordial de suas condições tanto de produção quanto de recepção. O sujeito da contemporaneidade midiática já não trabalha a própria concepção do eu tendo na sua experiência intransmissível do mundo um referencial preponderante; pois, de forma sem precedentes, ficou digitalmente exposto à mesma versão pública da imagem de si à qual os outros encontram no horizonte de interação interpessoal. Quer dizer, toda imaginação identitária passou a ser norteada pela autoconsciência (dos efeitos e da instância).
Voltando à Euphoria, Jules propõe uma diferença entre olhar e enxergar alguém — o primeiro concerniria às superfícies relacionais; o segundo à capacidade de discernir “a pessoa debaixo de milhões de camadas que não são minhas”. A apreensão da realidade a depender assim, pois, da percepção do invisível nas frestas do excesso informacional. O que, além de tudo, da parte dela conta principalmente como discurso sobre o amor — se dando em face da estilização maneirista dos tropos de transgressão adolescente na qual a série é baseada. A fim de produzir impacto no espectador, a intensificação dos padrões desponta entre as opções dramatúrgicas; bem como para as estratégias de performance. E daí põe-se a questão: sendo a narratividade extraída do comportamento, seria inevitável então que o comportamento desandasse a imitar a narratividade conforme as demandas dela? — mais que gestores da própria marca, maneiristas de nós mesmos?
II.
No tocante à disjunção medular entre performance virtual e presença física, poucos filmes são tão fascinantes em seu registro quanto Searching Eva (Pia Hellenthal, 2019), pois seus desafios formais acabam por ficar expostos em função da iniciativa labiríntica que é confeccionar o retrato de alguém a partir dos termos de sua autoexposição. Nesse caso, para perfilar a vida de Adam (que à época das filmagens utilizava o nome de Eva) — escritor, blogueiro, trabalhador sexual, imigrante, anarquista, adicto, “millennial” etc. entre outras categorizações listáveis com o intuito de cristalizar uma identidade. A face do oversharing raiz, mais confessional e caótico do que autopromocional ou santarrão, refletindo um tempo transicional e o desenlace dos últimos 60 anos de cultura jovem na Europa, a meio da altivez digital e da ternura vislumbrável no convívio pessoal. Apesar de despudorado ao extremo, Adam continuará — encarando a câmera — esfíngico. Sua nudez é negociada, calculada, impulsiva. Cada pose confrontativa em sua corporalidade à partida pode nada significar, mas a identidade online é assimilada de maneira holística e por isso a dissociação semântica entre físico e virtual não se dá de bandeja.
Hellenthal entrelaça seus mecanismos de expressão junto aos de Adam, mesclando estruturalmente os tableaux idealizados com preciosismo e os relatos confessionais extraídos do blogue de Adam, declamados em voice-over, além de perguntas feitas por anônimos em seu Tumblr, na tela exibidas em forma de texto branco sobre fundo preto (um apanhado de mensagens agressivas, confissões espontâneas, curiosidade obsessiva e ressentimento difuso; enfim, a experiência da internet). As imagens de Hellenthal vão alternando entre tableaux de conceito amaneirado e passagens emulando documentários observacionais. Que cenas cotidianas sejam tão manufaturadas quanto as estilizadas não é propriamente a questão. Se bem sabemos que a presença da câmera impõe condições à praticabilidade de qualquer forma de registro que queira postular ao “naturalismo”, dada a massificação brutal das câmeras na sociedade contemporânea, talvez já seja o caso de também estender essa suspeição — aos modos de agir de forma mais ampla.
Adam afirma o desejo de recusar a identificação com uma identidade permanente. Até porque, no seu ponto de vista, “qualquer pessoa pode fingir ser quem quiser”. Enquanto um leitor pede mais selfies, outro digita “eu acho que você não é uma pessoa real e isso está me deixando muito nervoso”. O teor das mensagens enviadas anonimamente pelos seguidores varia entre o patológico, o shitposting e o relacionamento parassocial — “as if their gaze was my responsibility…” é o que resta a Adam, sobranceiro, retrucar. “Faça as coisas sem precisar vincular qualquer significado a elas”, sentencia em resposta a um pedido de conselho. Mas pessoas vincularão significados — por exemplo, a imagens e a atitudes que possam não os ter a princípio (e assim seremos traídos por nós mesmos). A cara que apresentas sempre vai diferir da que os outros assimilam — estímulo disfórico. O filme termina buscando se aproximar do lado das leitoras de Adam: escutamos quatro vozes sussurrantes fazendo confidências — sobre como ler um estranho na internet pode acalentar, como ler um estranho na internet pode ajudar a construir autoestima, como ler um estranho na internet pode dar forças no processo de autoconhecimento, como ler um estranho na internet pode nos levar a amar esse estranho.
III.
Já no assombroso We’re All Going to the World’s Fair (Jane Schoenbrun, 2021) — essa obra de arte realmente extraordinária —, enfatiza-se a transcorporalidade da experiência à qual é dada vazão pelo regime de virtualização do “eu”, e a subsequente transformação do efeito de ocupar uma tela em agente subjetivador por excelência. A fenomenal Anna Cobb exprime com seu semblante a intensidade emotiva digna de uma Maria Falconetti cujo martírio a ser dimensionado dramaticamente se resume ao tédio e à solidão de nada ter para se escorar fora a banalidade das distrações acessíveis num quarto desamparado. O rosto pulsativo irrompe como tribuna poética à melancolia libidinal; sendo despertado através da mediação do dispositivo, que impele a personagem à performar, e, em função disso, confere a perspectiva de habitar uma realidade propriamente vivível. Fora da tela, testemunhamos a versão cotidiana da presença de Casey (Cobb) se manifestar em forma de corpo prostrado no plano material — “vai-te embora”, é como se ouvíssemos o vento murmurar; “tranca-te aqui dentro”, é a contraparte de gravitação à volta do monitor.
Schoenbrun faz da luz das telas incidindo por cima do olhar de Casey um motivo visual recorrente. Entre projeções e reflexos, a personagem recebe o brilho enquanto ritual de introspecção. We’re All Going to the World’s Fair é um filme sobre civilização — e, se há distintas formas de realizá-los, nesse caso o é pelo enfoque em hábitos e ferramentas. Fundamental então que a conclusão não seja centrada no ponto de vista da garota e sim no do homem mais velho com quem ela interage na internet e que gradualmente passa a orientar a estruturação narrativa. “Continue fazendo vídeos”, ele suplica feito viciado. O horror no âmago de We’re All Going to the World’s Fair se desenrola com duplo caráter: está na dinâmica do fastio existencial e também no fato de que tudo o que a personagem vai colocando para fora de modo a mitigá-lo fica à mercê da distorção alheia — exposta às mais repugnantes expectativas ou compulsões dos outros, tão inevitáveis quanto não-requisitadas. Vemos surgir repetidas vezes o ícone da espera ao próximo vídeo carregar, esse símbolo do cúmulo dos tempos-mortos. Mas os ciclos logo se reiniciam de maneira autômata; as playlists devem continuar. Tudo que começa como atividade termina como forma autoconsciente de teatro — inclusive o ato de existir.