Tempo, de M. Night Shyamalan: O tempo do Fim

Por Luiz Soares Júnior

Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até o tempo do Fim. Muitos andarão errantes, e a iniquidade aumentará.

Daniel, 12: 4 

Todos os estágios do conhecimento devem ser buscados no seio da Natureza.

Leon Battista Alberti, Della pittura 

O resort climatizado, o hotel cosmopolita são vetores de jouissance gregária através dos quais o nosso tempo prolonga e sistematiza a mais-valia luxuosa dos tempos privados de férias em uma espécie de kairos global e multicultural, experimento in vitro vorazmente aterrador em seu simulacro de acolhimento tépido da diferença, porque a tudo integra mais eficientemente ao mesmo: sob o cartão-postal asséptico da praia de Tempo, sub jaz um laboratório-panóptico que enfeixa o filme como o experimento do experimento, como aquilo que deve ser desconstruído em seu arremate como simulacro mabusiano diabólico (sim, de uma origem que nos solicita novamente no fim, como em toda genealogia digna de seu destino), cujo objeto ontológico é a experiência humana, de que somos mais e mais deficitários em tempos virtuais. Este é apenas o clímax, em matéria de narrativa, de cenário e de estrutura, de um processo subterrâneo de erosão, agora mais evidente em obras como Tempo, do sujeito e da experiência significativa de que este é tributário, em suma, de elisão da possibilidade, candente mesmo em tempos de uma arte de tecnologia extrema como o cinema, de contar a própria história: é esta impossibilidade o objeto do filme de Shyalaman.

A experiência aqui é para um outro tecnológico, central e registro computacional behavorista, talvez o arqui-dispositivo por detrás de tudo. Tempo é um título sintético e sincrético, pois com os personagens decaímos antes do apogeu, e portanto não possuímos mais o tempo de uma experiência teleológica progressiva, de uma experiência propriamente dita: a caducidade de uma obra muito nova, já que encimada por uma cúpula modernista (o olho en abîme do cineasta M. Night é para você, e isto apesar de jamais abandonarmos o plateau do filme, apesar da fissura diegética que só nos entreabre outra dobra da mesma narrativa refratada),e  ao mesmo tempo muito velho, porque atravessado de coordenadas modernas, a tardia e nascitura anáclase do cinema de Shyamalan. 

Para modus operandi de sua compreensão mais estrutural, Tempo coteja trabalhando dois partis pris pós-modernos (o simulacro, o dispositivo, ou a praia vigiada e o laboratório) sem jamais abandonar as coordenadas do cinema moderno, cinema para o qual aliás o tempo, tematizado exclusivamente enquanto tal por Tempo,  foi o rincão, o privilegiado projeto de descrição (um cinema mais descritivo de estados de coisas e de almas que narrativo, como nos mostraram as caminhadas videntes dos personagens do Rossellini da guerra pelos escombros da cidade desolada, embora finalmente virgem de valores para uma primeira vez). Com uma complicação suplementar, essencial à face de Janus complementar e reciprocamente implicante do filme: a experiência do “cinema moderno” agora é, mesmo que de maneira endo-diegética, aberta às escaramuças do simulacro, do poder vivissecante do significante, da ronda vertiginosa da interpretação do espectador, na medida em que o filme solicita a memória,a  percepção e a inteligência nossas (como igualmente a dos personagens e  isto em uma mesma rota unívoca) para saber recordar e integrar à diegese in memoriam uma “garrafa lançada ao mar” que será essencial na compreensão de tudo, em sua decifração espectatorial; em que sentido escrevo endógena-diegética? No sentido de que Tempo jamais abandona a abóbada do próprio filme, interditando a exterioridade radical, tão comum em obras mais assumidamente pós-modernas, do trabalho crítico integrado à configuração da própria obra, como parte constitutiva de sua matéria imaterial;  porque jamais saímos de dentro de Tempo para intentar uma supra-análise crítica de seus conteúdos, mesmo e sobretudo quando a infração suprema ao codex clássico se encena expressamente para nós,quando da revelação do simulacro pelo próprio diretor, agora personagem: há ainda um terceiro e decisivo ato de arremate para que o contrato da crença clássica, apesar da fresta entreaberta pela presença da câmera e do olhar de M. Night para o espectador, possa ser reconstituído no laboratório com que o jogo do encoberto e do desvelado se encerra, deux ex-machina que ao princípio reencontra a origem diegeticamente, na mensagem cifrada e agora salvífica da criança para a qual tudo converge e solicita enfim reconciliação; aliás, é para este esconde-esconde típico de obras que permanecem na Origem que o filme encontra um norte decisivo: um filme sobre o cronos entrópico do fim reencontra o Kairos sintrópico da origem e na metade de Tempo já vamos sapiencialmente aprender a morrer, como o casal protagonista nos ensina à beira da fogueira e ao lado dos filhos, decalque do leito de morte com candelabro na mão e chiaroscuro no fundo dos Greuze e Fragonard da história da arte para um cenário de cinema moderno; no máximo, o que é exigido ao espectador e à estrutura do próprio Tempo é decifrar a mensagem abscôndita da infância, e não o engendramento de estripulias intelectuais com que se deleitaria por exemplo um Peter Greenaway ou Lars Von Trier.

Se Tempo pode ser considerado uma obra modernista como estou fazendo aqui é apenas na medida em que M. Night  é antes de tudo o intérprete de um destino-herança (Schicksal) do cinema moderno, mas só o é legitimamente na medida em que seu cinema também se mostra atento aos usos e leituras da contemporaneidade, em que se justapõem e implicam esta herança e seu herdeiro futuro, agora presente; Tempo tão cedo não vai correr o risco de ser um espécime caduca ou anacrônica de leitor de seu tempo, ultrapassado por este, porque sabe equilibrar a justa balança de ser o lugar de um apelo do passado que se engendra no presente de sua substância atual, e por esta razão solicita o cinema in extremis do nosso tempo apenas na medida em que sabe  sopesar a ideal medida de ser o locus de acolhimento do passado, um tipo oposto em matéria de paradigma à experiência intempestiva do aprendiz de feiticeiro de Goethe, que desencadeia e leva à emergência da superfície  fórmulas de abracadabra e forças mágicas que ele não sabe controlar. Esta, aliás, talvez seja a falaz virtude de que Tempo possa vir a ser objeto, para um espectador do futuro do imperfeito (alguém para quem o passado conta como impressão de fantasma sobre o futuro): seu excessivo refinamento de autocontrole estrutural pode vir a perdê-lo, porque são aqueles cineastas que menos recuam e eclipsam (menos semeiam elipses, para o fora de campo do espectador preencher ou enervar), que mais manietam o filme em nome de um projeto artístico que o suplanta em direção à totalidade da obra ou a fatalidade da herança, que podem sofrer a ação de um processo de envelhecimento, um tanto ironicamente aqui porque à imagem e semelhança do aceleramento ontológico perverso sobre o qual Tempo se debruça; esta é apenas uma hipótese de trabalho, a que farão jus ou não os pósteros do filme de Shyamalan.

Em um de seus textos, Jean-Claude Biette, a propósito de um panegírico a um dos últimos filmes clássicos fecundos em termos de enunciação- e talvez não por acaso se trate de uma obra de fantasia, como em Shyalaman de fantástico, “nosso último Logos”: o díptico indiano de Fritz Lang, falava desta língua universal, mas oca que se substituira à linguagem comunicativa do cinema clássico, língua esta que não fala muita coisa de autêntico senão do esvaziamento do sujeito/auteur em nome de um vernáculo informatizado, com a consequente vitória do algoritmo sobre o emblema da experiência, o significante/plano de cinema, que o cinema havia paciente e sistematicamente urdido desde os anos 30: “(…) a língua do cinema internacional é uma espécie de compromisso estético entre a modernidade dos hollywoodianos e a dos europeus das recentes gerações. Uma língua que toma emprestado ao mesmo tempo à eficiência do telefilme americano, ao pragmatismo preguiçoso do audiovisual europeu (de que Rossellini foi o infeliz predecessor) e às novas línguas restritas e referenciais do comércio (pubs) e do espetáculo (clips), para se constituir em pretenso instrumento de comunicação universal , enquanto que não passa de uma retórica oportunista, prestes a capitalizar não importa qual nova técnica”. E esta língua sem horizonte nem espessura realmente comunicativos, sem objeto ou conteúdo senão o seu próprio balbucio asséptico avaro de sentido – e, portanto, sem compromisso com a verdade outrora habitante de um “plano de cinema”, com todas as suas mediações contidas/conjugadas -, língua esta de que o clip constitui a forma de representação mais pertinente, possui hoje seus objetos aclimatados, e ei-los objetivamente encarnados nos dois cenários complementares/superpostos de Tempo, o simulacro e o dispositivo: a praia e o laboratório, representações respectivamente do paraíso (reencontrado porque perdido: a impossibilidade de contar esta história, rápida demais para ser capturada pela palavra humana) e do inferno para-si do laboratório a partir do qual, no rewind da experiência reconquistada do vídeo, tudo se reconstrui; no primeiro caso , a praia é um corpo que nasceu decrépito, pois oculta en abîme uma dobra tecnológica e distóptica pensante, que só ao final será completamente desarmada: seguindo à la lettre a reflexão de Biette, Madonna ou um rapper famoso poderiam ter lançado neste hotel seu novo clip, aqui todo o bric à brac da indústria cultural bem assentaria seu palco e bastidores, como assenta diegeticamente no filme, mesmo que no arrière-plan a ser desvelado num final grandiloquente no qual o Tempo como dispositivo se revela e se desarma,  se engendra e se encena todo experimento inumano, pós-humano em nome da humanidade sofredora, cooptação pelo julgamento moral da dualidade de que o filme de M. Night é debitário: aqui, a mise en scène eugenista do nazismo e a inefabilidade da bella figura clássica deságuam com propósitos humanitaristas perversos, mas tudo é prestidigitação para manter intocável a estrutura à parte do filme de experiência/experimento clássico, neste caso é claro com uma essência de fantástico que melhor encobre para tudo suturando  ao cabo advir à cena: o des-cobrimento espetacular do dispositivo final pouco serve para legitimar os encobrimentos e retoques de que os travellings indexados inseridos por Shyamalan com propósito de desmascaramento subliminar (a princípio, a câmera com a stylo dos travellings apenas aponta ou sublinha, deixando em geral entrever de forma sub-reptícia que no próximo contracampo vai advir algo de monstruoso ou aberrante, enquanto que no découpage tudo corre escorreito e lábil, pelo menos até que a ameaça onimosa no fora de quadro se revele claramente) estabelecem.

Tempo precisa deste mecanismo de refração, em que o filme de experiência/experimento moderno, com um cenário e personagens articulados como se partes do mesmo corpo exangue, na verdade encobre um dispositivo pós-moderno que em nada deixa a dever aos seus espécimes mais turbulentos ou histéricos, só que agora à la Shyamalan: uma superfície íntegra apenas em aparência, pois se estimulada pelo bisturi do olho do espectador em seus pontos vitais vai descobrir uma ferida profunda e candente, que estrutura o filme e consequentemente a recepção; Esta é a estrutura-mater indispensável a filmes como Tempo e A visita, este é o destino do cinema que Shyamalan trabalha e legitima, fornecendo uma resposta fecunda, mas sempre provisória (a dimensão experimental de seu cinema, que subjaz à arquitetura neo-clássica) à questão endereçada pelo passado: o filme de gênero é um simulacro que encobre o verdadeiro simulacro, manipulação virtual do panóptico áudio-visual televisivo como aqui ou a telinha do celular em A visita. Não por acaso M. Night escolheu para sua alegoria transparente de febre do inferno, alegoria distópica de ficção científica filmada enquanto tal (as condições da representação, que assolam à cena do filme no final: o laboratório, a câmera de registro e o aparelho de edição, o staff da filmagem e o clin d’oeil não extra, mas  infra-diegético do diretor para a câmera) sobre o fim dos tempos ou o tempo do fim – término da experiência como re-conhecida pelo ocidente até então, pela lógica “aceleração de partículas” do travelling lateral extemporâneo ou travelling avanti de insert-, estes decores terminais de uma civilização que já não sabe morrer senão aclimatada pelo labirinto vítreo e customizado de suas galeras de prisioneiros da caverna cuja sombra foi usurpada por uma tela plana, uniforme e portátil de celular que nada reflete senão o seu próprio e outro vacuum: qual a relação precisamente entre a entropia ontológica- o éden virado ao avesso descrito pelo filme, em que a velhice praticamente coincide com o acme da juventude, em que tudo se torna contemporâneo e hodierno, anulando-se a experiência teleologicamente orientada do princípio, meio e fim – e a assepsia pós-moderna de um décor e uma língua que já não precisam falar pela mesma cartilha do humano para serem identificados como pós-modernos? Sim, M. Night nos oferece um filme sobre  a pós-modernidade sem abandonar nenhuma coordenada da narrativa, figura e fundo clássicos, com a exceção dos sublinhados acima descritos (os travellings ilusórios de um Méliés que integrou o ethos da transparência dos 40 às suas estripulias de proscênio…).

Tempo é um filme sobre o pós-moderno, o pós-humano (admitindo-se a modernidade filosófica como aquele movimento cujo princípio coincide com o grund do sujeito da fenestra aperta de Alberti e do espelho de Brunelleleschi, que subsume a todo ente sob seu olho onisciente) sob o ponto de vista de uma margem ainda clássica onde o homem não coopta e domina tudo das alturas de sua manipulação representacional, e sim ainda é um ente criado ( ens creatum, segundo Leibniz e Lumière) ou personagem diegético da ficção endógena do filme: os devires acelerados mas perceptíveis enquanto tais apenas se cotejados com o movimento realista de um corpo humano que se desloca pelo espaço do plano de cinema, o fondu au noir onde se susta a cronologia diegética da jouissance e se gesta uterinamente um tempo da danação, o plano frontal mas atento aos deslocamentos paralelos que acompanha os movimentos e os coordena entre si e contra o fundo do décor: M. Night filma Tempo a um  só tempo, uma experiência e sua antítese – pós-humana, pós-sujeito e portanto pós-moderna de dentro da praia diegética, de coordenadas clássicas e subjetivistas do grande décor absorvente de fascinação dos tristes trópicos entrópicos.

Não precisamos ser talmudistas ou filósofos da diferença francesa para pensar, segundo o Louis Marin de A palavra comida (La parole mangée), semiólogo e crítico de arte terrorista inspirado pela gramática de Port Royale, que talvez não haja melhor palavra senão o oxímoro para exprimir o paradoxo onde a verdade, dádiva infinita, se experimenta outra e se revela integralmente numa partícula finita: começamos com o sol negro de Rimbaud,e por que não terminar com o Inferno tropical do panóptico rigidamente manipulado, ‘audiovisual’ com que se encerra Tempo? Por que não imaginar termos e coordenadas a partir dos quais o apocalipse, o fim dos tempos, nos apareça sob a face consetudinária das férias de verão- um tempo a mais, esvaziado ou pleno, segundo o ponto de vista mediatório do trabalho ou da fruição integral-, e a máscara onimosa de sua demanda de morte coincida com uma oferta surpreendente de jouissance oferecida pela instituição predatória capitalista por excelência, ao lado do banco? Um experimento, certo, legitimado a posteriori  pelo fito salvífico de abreviar o sofrimento humano, mesmo que o quid da experiência, cuja essência especular é o tempo, seja o mais precioso dom a ser aqui cooptado e desperdiçado; sob a égide do Divino, pelo menos enquanto este existiu (fase serena, acidentada aqui e ali apenas ao custo de reecontrar-se una ao final , mas sobretudo teleologicamente orientada da estética clássica, inspirada pela crença onto-teológica numa entidade superior que asseguraria, ao cabo e portanto ao princípio, sentido a tudo), os homens foram submetidos a experimentos semelhantes, mas estes concidiam com a urdidura do próprio filmes e jamais virariam a  câmera de volta para nós: aqui, é Justamente M. Night quem se incumbe de representar este papel de revelador en abîme, sem que no entanto o filme enquanto tal, repartido de parte em parte com uma estrutura endógenamente auto-centrada, sofra jamais o estilhaçamento tumultuoso de tantas obras mal polidas e desorientadas da pós-modernidade: este diamante cindido e cerzido em dois pelo para-si do panóptico “diegético” do arremate de Tempo se parece, em sua polidez e cerzi-dura (excetuada a resolução final, que precisamente o cinde em dois) com outro espécime neo-clássico de sua carreira, o The Happening (Fim dos tempos), que não por acaso tinha como objeto um devir igualmente crepuscular, lá talvez mais espetacular, mais propriamente apocalíptico, talvez porque não objeto de um experimento científico controlado sob condições de temperatura e pressão. Mas isso é objeto especulativo para outro texto.

De te fabula narratur (A Fábula fala de ti): este conto do avarento monstruoso de Horácio nos repugna pelo que há de Mesmo na alteridade do monstro  (eu, tu e o monstro: questão de grau, sempre) em cada um de nós, como pensavam igualmente o Freud das pequenas diferenças e o Sibony de Sobre o anti-semitismo; todas as fábulas falam incansavelmente de nós – e talvez as alegóricas sejam as mais adequadas para as crianças, porque lhes oferece um organograma opticamente expressionista à grandeur de vue  sobre os labirintos da vida, como Tempo o é para o espectador mainstream -, mas como são obras clássicas, feitas de filtros e filigranas, já que o classicismo foi uma arte da absoluta discreção, o fazem grunhindo com a máscara do Minotauro ou reluzindo pedra lazúli com o escudo com que Teseu venceu a Medusa; De Esopo a La Fontaine, de La Fontaine a Lewis Carrol e de Lewis Carrol a Jodorowski a fábula foi este conto necessário para instilar um julgamento moral em seres ainda inocentes mas que precisavam ser precavidos dos horrores do mundo, já que até então tinham unicamente à sua disposição as ofertas epifânicas daquiilo que é, como as crianças que escalam o canyon e se banham no mar sem saber que já não cabem nos braços da mãe; as fábulas nos injetavam anticorpos, porque segundo o mecanismo vitorioso da vacina precisamos cultivar um que de atroz da alteridade em nossa própria derme, para que nosso encontro com a mesma não nos seja fatal; não é isto o que Old faz, não nos instila anticorpos contra um uso falaz e histérico da pós-modernidade, espécimes de que nos vemos circundados como em uma arquibancada de neo-bárbaros sem noção da herança a que nós, contemporâneos, temos antes de tudo de prestas contas e préstimos? 

Não um panegírico a priorístico do passado, pois isto equivaleria a uma obra passadista, masturbatória-idealista e anacronista, mas um reconhecimento de que sem este não haverá futuro, de que tudo percorre a mesma e outra linha de destinação de que o homem é o agente testemunhal e o promotor de criação; assim, Tempo não foge desta lógica paranoica que desconfia do homem no comando da representação daquilo que é, porque esta é a lógica de nosso tempo, na política, costumes ou artes: a fábula é um panegírico ‘desconfiado’ do encantamento do mundo que no fim de uma era ( em tempos, como se diz, de modernidade líquida) vem solicitar também nossa atenção e nosso dedo em riste para os perigos de uma cooptação do encantamento do que é pela tecno-ciência, tentáculo vastamente urdido com o propósito de estancar as fontes apofânticas do que nos aparece, de dar à sua fruição uma destinação algorítmica, à experiência um telos semiótico, encobrir o ser com a teia e tela dos conceitos e dos registros, dos teoremas e das sistemas; o éden paradisíaco do avesso onde a experiência sofre um golpe fatal em Tempo poderia ser um simulacro de Lars Von Trier ou desaguar num dispositivo de Peter Greenaway, mas o cinema de M. Night contém ainda e sobretudo a fascinação  dos solilóquios, o eudaimonismo dos gestos últimos em família, o combate sempiterno entre o antagonista racista e seu inevitável destino, os tormentos da vida em grupo e a comunidade que só pode ser empreendida a partir destes tormentos (sapiência dos deslocamentos e intumescência dinâmica dos planos de conjunto) , a condensação do crepúsculo e a rarefação da aurora, formas ontológicas de resistir num plano de cinema ao reino fantasmático das imagens pós-modernas da melhor maneira para se fazer isso: perversamente, se servindo do simulacro e do dispositivo da modernidade líquida para triunfar sobre seu sepulcro; para mim, a vitória do plano de cinema sobre o algoritmo do clip ainda é uma batalha a ser ganha, e Tempo é certamente um belo espécime para pensar esta contenda salvífica para toda uma História do cinema que ainda está aí à porta para nos desafiar. 

FacebookTwitter