Por Natália Reis
Um dos conceitos explorados pelo pesquisador e realizador Jean-Louis Comolli nos seus estudos a respeito do cinema documentário é o da auto-mise-en-scène. A ideia parte da constatação de um gesto inerente ao objeto filmado, que, ao tomar consciência da câmera, passa a empreender uma forma de ficcionalização do próprio comportamento e da maneira como se porta e se coloca no mundo. Para Comolli, é quase inconcebível acreditar que um indivíduo ao ser observado nessas condições não entre também no jogo da representação. Em Panorama, documentário sobre a gentrificação que engole cada vez mais uma comunidade de mesmo nome no bairro nobre Jardim Panorama, no Morumbi, o diretor Alexandre Wahrhaftig vai se valer da articulação da auto-mise-en-scène manifesta no depoimento dos moradores da região para traçar um mapa territorial e memorialístico de um espaço que existe sob a constante ameaça de desaparecimento pela especulação imobiliária.
Aqui, os relatos de figuras veteranas da favela tomam a dianteira da narrativa, pendendo ora para o naturalismo ora para a artificialidade de situações claramente propostas pelo diretor. O que, ainda que não interfira na pulsão nostálgica do filme ou na explicitação da relação dos moradores com o estatuto da incerteza no futuro, deixa de fora algumas informações que poderiam complementar a força desses momentos. A imagem geral acaba sendo um tanto difusa, enfraquecida, perdendo-se numa estrutura simplista e num tratamento da linguagem documental que não busca em nada se afastar dos lugares-comuns, mas ainda assim podendo reservar instantes de beleza singela, como uma caminhada de dois velhos amigos pelos labirintos de construções (abandonadas? ainda inacabadas?) e vielas, a revisitação de um álbum de fotografias da juventude e as letras dos raps feitos anos atrás, que são evocadas entre uma conversa e outra numa constatação de que os sentimentos de pertencimento e incerteza sempre estiveram presentes na vida de quem habita o lado oculto do Jardim Panorama.