Mostra de Cinema de Tiradentes: Germino Pétalas no Asfalto

Por Gabriel Papaléo

As redes de apoio, o conforto para facilitar, melhorar, e tornar mais visível a convivência com pessoas trans e travestis, são fruto da escuta e da vontade de grupos que abraçam sem desmedidas a franca ação direta. Como no curta Corre das Marmitas, também presente na Mostra de Tiradentes, Germino Pétalas no Asfalto faz do retrato de ações sociais o seu panorama de resistência contra o desgoverno atual. No filme de Ricardo Pretti e Phillipe Urvoy, o elogio experimental ao poder do movimento; aqui, no filme de Coraci Ruiz e Julio Matos, a opção pela escuta na câmera, pelas entrevistas e relatos. É um campo já coberto anteriormente pela diretora ao retratar em Limiar a transição de gênero de seu filho Noah, aqui também presente como um dos amigos do protagonista Jack, um menino de 15 anos que tem seu processo de transição filmado pelos diretores por anos. O que promete no seu primeiro plano uma investigação do amadurecimento, de um corpo e de uma personalidade, se torna um coral de demonstrações de afeto para se fazer presente diante de quem precisa de apoio ao tomar escolhas que infelizmente ainda soam tão incômodas a uma sociedade retrógrada.

É um filme que propõe o olhar para as alternativas, para as formas de organização e união que surgem como parapeitos para pessoas que são rejeitadas nos meandros mais normativos sociais no Brasil – religião, política de situação, relação afetiva, família. Nesse campo, visitamos um encontro mediado por Victoria, personagem que se identifica como “travesti feiticeira”, e que cria rodas de conversa e escuta para compartilhamento das experiências, suas e alheias, sobre sua identidade e como ela se insere no social. É através dela que o filme se permite passagens mais performáticas, focadas no misticismo dessa nova religião travesti, uma revisão de ícones de religiões outras para propor visibilidade diante do apagamento. É um jogo narrativo tendendo a transgressão mas que é montado como causa e consequência das mais básicas, mesclando essas alternativas afetivas com a violência do bolsonarismo e seus tentáculos, o que sublinha demais as ideias propostas pelos diretores.

O detalhamento na estética do cinema observacional, mais atento aos processos e comportamentos, acaba conflitando com a disposição pontual de criar uma disparidade com a violência dos relatos trans e homofóbicos dos homens da extrema direita que têm seus palcos nas igrejas e nas sessões parlamentares. Essa disparidade é reforçada até a exaustão, tanto na montagem quanto nos grafismos que volta e meia tomam a imagem, animações que propõe uma “sensibilidade”, uma “pureza” desses gestos que se espalham pela cidade (como o título propõe), mas que acabam domesticando e trivializando um tanto essas ações de pertencimento. Os glitches na imagem, que surgem como dizendo que as representações estéticas estão em crise, também soam gratuitos e afirmam mais ainda que o forte do filme é na temática e nos personagens que retrata.

Em certo momento, uma pessoa toma o microfone no encontro da UNA para falar sobre como a pós-modernidade aceita que as mudanças de estrutura social podem ser feitos dentro do próprio sistema heteronormativo, e como ter essa visão é algo perigoso e insuficiente para dar conta das vontades e anseios da comunidade que representa. Essa fala não apenas evidencia bem toda a disposição do filme em focar nos rituais alternativos, uma questão moderna por excelência e que serve bem ao senso de coletividade despertado por essa transformação pessoal de Jack e seus amigos, como também preenche lacunas que o filme infelizmente deixa, ao apostar mais num panorama um tanto genérico das trocas necessárias para se confrontar essa dura realidade de enfrentamento.

É complicado pensar nos termos de forma e conteúdo em filmes como esse, não só porque seria um reducionismo estético separar as duas margens que nunca deveriam soar dissociadas, como também se argumenta que fazer isso é cair no binarismo que a própria natureza temática do filme critica – mas a desconexão entre as boas intenções e a articulação estética sobre elas fica bem evidente. A câmera parte de um relato de amadurecimento, das incertezas e da identidade na formação de jovens, para se contentar com o que se espera do registro afetuoso tantas vezes vistos sob temas sensíveis e atuais – não por acaso presentes com frequência em Tiradentes. Fica a torcida por um alcance maior de público para elucidações acerca do tema; é a limitação e a vontade de Germino Pétalas no Asfalto.

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