Por João Lucas Pedrosa
“O gosto camp atual apaga ou contradiz frontalmente a natureza. E a relação camp com o passado é sentimental ao extremo”. É certo que o “atual” camp discorrido por Sontag era o dos anos 1960, oriundo de outra realidade. Acaba sendo sempre tortuoso discorrer sobre o tema por conta de consistir numa forma específica de sentir (ao invés de estetizar) objetos e pessoas, e por haver confusões, quando não uma convergência direta, entre ele e um maneirismo estético. Mas acredito que muitos pontos levantados pela autora sobre essa forma de sensibilidade – encontram-se com a recente obra de Lucas Andrade exibida na Mostra Aurora da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
“Grade” acompanha vários internos da APAC, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, em São João del Rei. É um tipo diferente de centro penitenciário, em que os prisioneiros organizam os recintos e as atividades, lavam sua louça e sua roupa, administram a própria segurança. Basicamente, são os próprios policiais. É um cotidiano rígido, com hora obrigatória de oração e trabalho. Existe hierarquia entre os condenados, e alguns que estão há mais tempo e ocupam posições mais elevadas de chefia. A escolha por estar lá é facultativa: assine um papel e volte para a prisão, se assim preferir. Interessantemente, há quem prefira; lá é mais hostil, mas tem-se outras escolhas (como a de não rezar o tempo todo). Há espaços de debate e solução de atritos pessoais (picuinhas individuais) e coletivos (brigas pelo tempo de televisão), mas os conflitos nunca chegam ao físico pelo recorte de Andrade. Se surgem por fala, são solucionadas com um terno e sorridente abraço entre os dois brigados. A APAC é, necessariamente, um espaço inteiramente masculino, dado que é prisão; mas é, interessantemente, apresentada por Andrade como um espaço onde parece predominar uma sensibilidade mais feminina, onde as pulsões de violência, e até mesmo de sexualidade, quase nunca citada em filme (mas chegaremos à forma que é citada), são sublimadas não só por atividades laborais, mas também artísticas: tricô, canto, pintura. O fim que justifica os meios é uma decisão pessoal pela mudança de vida, de comportamento. Isso envolve, naturalmente, a mudança de postura para com o mundo.
Onde entra, nisso, o camp? O longa começa numa sorte de cinema observacional, de câmera parada, com enquadramentos de profundidade. Tudo indica que o filme seguirá um convencional realismo psicológico e se fará de mosca na parede (como em algumas outras sequências procurará operar). Então, em determinado momento, um dos prisioneiros aparece voando sobre um tapete mágico, sobre uma paisagem claramente de chroma key, acenando e mostrando o dedo do meio para o mundo abaixo (pode haver um joguete com a prisão convencional, que eles costumam chamar de “lá embaixo”; mas pode também ser literalmente “o mundo todo”). A partir daí, inúmeras outras esquetes escritas e interpretadas pelos internos aparecerão de quando em vez, às vezes só inseridos em surreais – como no fundo do mar, ou dançando com outros colegas de prisão no campo -, mas, muitas vezes, performando um outro papel – um dentista carniceiro, uma irmã cafajeste, um padre adúltero, um marinheiro prestes a cair de um navio em mar revolto. Todas sempre humorísticas e, muitas vezes, cenicamente afetadas. É o que Sontag chamaria de “Ser-Como-Interpretar-Um-Papel”: no caso, papel e cenas que eles mesmos escolhem interpretar e, por meio deles, apresentar seu senso de humor, sua corporalidade performática em descontração. É um furo mais que bem-vindo (já iniciado em empreitadas mais antigas como A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa,ou A Cidade É Uma Só, de Adirley Queirós) num estilo que procura restringir indivíduos da camada popular ao “realismo”, acorrentá-los ao concreto da condição do entorno, despido de contradições, sonhos, fantasias, afetações.
Mas as esquetes também começam a contaminar as cenas de suposto “cinema direto”, quando alguns momentos cotidianescos apresentam ostensivas quebras de eixo, takes estilizados, conectam-se com as esquetes (o homem que faz o marinheiro tem na esquete um amigo embriagado sem condição de se segurar em meio à tormenta; após um corte para ele despertando, o que faz a cena parecer um sonho, sai procurando o amigo pelos dormitórios). Mesmo algumas sequências dramáticas começam a soar um pouco encenadas. Desconfiamos do realismo, do que é encenado e do que é captado enquanto acontecimento. Como não sabemos exatamente o que é escrito ou não pelos homens filmados, há beleza e tristeza em imaginar que a sequência de um deles desabafando com um padre no pátio da APAC sobre a rejeição da família seja de sua própria escolha.
Eis que a forma de “Grade” se alimenta desse conflito em que a consciência da encenação infecta os momentos em que ela não é exibicionista, em que supostamente “se vê aquilo como é”. Ela liberta os prisioneiros por meio dos excessos cênicos guiados pelo arbítrio deles mesmos, emanando uma essência sua que só poderia ser acessada pela autoparódia em sua mais pura ingenuidade, e trazendo a descontração como tom geral de um filme que poderia ser bem mais pesado. Mas, claro, é um filme que quer ser sobre um grupo de homens, não sobre um grupo de prisioneiros.