Amores do meu exílio

Por João Pedro Faro

image0

Guará está à solta. Ele veio de uma terra além-mar, vive em um caixão com banheiro e cozinha, usando uma sunga vermelho-sangue. As ruas de Londres estão silenciosas, como em Drácula (de 31), só que inebriadas pela cor e pela luz, ao invés da névoa e da sombra. O monstro circula livre, sem ameaça ao seu império de terror, sem concorrentes à altura, sem conflitos a serem ultrapassados. Sua rotina é suficiente, pois já se revela proveitosamente inumana. Da mesma forma que Zé Bonitinho foi, ao mesmo, Chacrinha e Vincent Price, Guará também é simultâneo: invoca Peter Lorre e Pedro de Lara.

Guará é um monstro em férias nesse exterior pouco táctil, pouco convidativo à permanência. Na falta de um espaço em que possa fixar-se, é preciso se agarrar ao primeiro pescoço que vê pela frente. Para sua sorte, o que não falta são loiras para estrangular. E não se trata de qualquer distúrbio ou psicose, está mais próximo de uma inaptidão social irreverente, uma intentona comunicativa de métodos pouco convencionais. O que poderíamos esperar de um vilão tão completo além da monstruosidade perfeitamente carismática? É um compêndio de talentos sem reconhecimento popular, apenas tentando se adaptar a um ambiente novo trazendo, em sua bagagem de convivência, a linguagem do estrangulamento.

Sua barba formula o rosto, epicentro vulcânico de toda a fita. Por vezes, confrontamos seus olhinhos nervosos que, ao contrário da câmera, não conseguem manter a concentração em um ponto fixo. As mãos são irmãs dos olhos, não conseguem parar quietas, giram a correntinha que prenuncia o libertador assassinato ou ajeitam as extremidades do bigode para mantê-los desenhados. Então, sendo possível trocar os olhos pelas mãos, é a lente que lhe estrangula: fecha o plano com sua face, na proximidade desejada, e os extremos do rosto sangram pelos lados da tela. Não nos cansamos de retornar ao rosto de Guará, porque ele possibilita todo o resto, torna-se necessário sufocá-lo com a câmera. Em outras palavras, é Bressane quem estrangula o estrangulador.

Bressane está à solta. Sabemos que o exílio não passa de um avacalho, então não há tempo a perder lamentando a terra natal abandonada. Aqui o problema do espaço é a falta de montanhas, de morrinhos, de subidas… Ao invés dos pedregulhos gigantescos que expandiam o teto do quadro para as nuvens, nessa terra estrangeira, Bressane precisa se contentar com o limite dos complexos de apartamentos londrinos. O Brasil são as memórias: Helena babando o sangue preto, Hugo e Milton na sarjeta, as ruazinhas medíocres do Leblon… Fica na tela, por momentos fílmicos em forma de sinapses, a saudade dos amigos que matei.

image1

Bressane é fixado por gramáticas através de caligrafias tortas. Seu primeiro passo mais parece um recuo: por adorar prólogos, abre o filme com a costumaz entrega das imagens que se sucederão, isoladas da lógica sequencial, atreladas a imprevisibilidade do movimento pendular de sua narrativa. Dizer que não há narrativa em um filme como esse é jogar no lixo um dos operadores mais minuciosos da condução cinematográfica, tão preciso em dispor suas imagens em uma linha de nós emaranhada.

A questão é que, ao invés de colocar a linha que costura os planos através da configuração de uma linearidade, ou de uma não-linearidade, Bressane empuxa o filme para um globo de superfícies possíveis, em diversos ciclos constantes que seguem ordens claras, mas que estão sempre incapazes de começar ou terminar na frente da lente. Não à toa, ele se aproxima do fim de sua duração com um livro de palavras finais ilegíveis, que poderiam surgir como sucintez da obra, mas preferem ser sua inconclusão, sua incompletude elementar. Portanto, o prólogo serve como demonstração do futuro, e o epílogo como apontamento da foz.

A fluência imagética só é completa pela contramão do repertório sonoro. Os gritos animais, que se repetem junto com os sons ambientes dissonantes, puxados para o agudo, se complementam em uma trilha formada por anomalias auditivas. Mas o grande filão, como de costume, é o silêncio: poucas coisas são melhores do que quando não se escuta mais nada e é possível isolar-se totalmente nos estrangulamentos que se amontoam.

O que é engendrado, na costura da montagem, são os lapsos de tempo que operam pela via do prazer. Não tem tempo ruim no exílio: é uma fartura de pescoços para serem esmagados.

As loiras são uma epidemia. Elas ocupam todo canto, surgem de toda beirada, estão embaixo das escadas, ocupando praças públicas, se infiltrando nas casas… É o que torna os olhos tão irritadiços, tão magnetizados por um entorno tão infestado de cabelos amarelos. O magnetismo, elemento bressaniano de praxe, faz com que suas figuras em tela tenham aproximações inevitáveis, eletrizantes. Aqui, são as mãos do Conde Guará que não aguentam a pulsão magnética, precisam dos pescoços, precisam fechar os dedos na nuca loira nem que seja só por um instante. Mas isso está longe de ser um problema para elas.

As loiras buscam ser estranguladas. Apresentadas em sua face materna, ao nanarem um nada inocente neném no começo da fita, dispõem não apenas de uma compreensão maternal de nosso amado assassino, que aproximaria o filme de um páthos indesejável, mas também estão dispostas ao prazer da asfixia, verdadeiramente definidor. São vítimas consensuais, que morrem e revivem apenas para sentir a morte novamente, que não param de circundar o monstro, de tentá-lo aos seus instintos, atraídas pela repulsão. Cumprimentam o estrangeiro exilado com o generoso desfile de pescoços. Exilado num paraíso de amores, o estrangulador não poderia pedir mais. Até ele, em dado momento, chega a se cansar de tamanha oferta de vítimas. Monstruosas essas loiras, que perseguem incessantemente nosso humilde herói, ansiosas pela falta de ar que ele amorosamente as proporciona.

O que há de sobra no assassinato é a vitalidade. Uma espécie de vida eterna conquista pela insaciedade, atingida pelo monstro perfeito, vencedor em suas peripécias românticas. Seu modo de demonstrar a paixão, abandonando os cadáveres pelas praças e calçadas, sempre ocasionam ao retorno. Para matar as mesmas mulheres, para caminhar pelos mesmos lugares, sendo o forasteiro macabro de uma terra de oportunidades riquíssimas… Como aproveitar melhor um exílio europeu do que com uma coleção de paixões assassinadas?

As memórias dessa jornada permanecem perdidas. Mesmo que expostas, elas nunca desejaram serem encontradas, não pertencem à história. São os restos de um passado possível, em um cenário explorado às custas do prazer, que não está disposto à lembrança, apenas à repetição, ao replay (ou refrão), o que é muito diferente. Não se recordam as loiras estranguladas, se repete diariamente o mesmo gesto do estrangulamento, se estrangula de novo, cada vez como se fosse a primeira. Elas continuam a morrer, e ele continua a matar. Se vive o presente através da memória, já que é a única coisa que se resta quando não há mais nada. O estrangulador vive. Na imagem final, já grisalho e caquético, ele não perece, apenas sai de quadro. Escapa do olho. Sua imortalidade está aí, para ser subjugada como memória.

image2 image3

FacebookTwitter