Por Luís Flores
Um plano em close-up nos mostra a tela de um jogo pornô, com escala de cores simplificada, na qual um homem penetra uma mulher por trás. Para simular o ato sexual, o jogo se vale de uma pequena fração da ação replicada infinitamente, em loop digital. Corte para um braço mecânico, na forma de rolo gigante, que testa a qualidade de um colchão recém-fabricado. Corte para o garoto que controla, no primeiro-plano, um joystick em formato fálico, enquanto no fundo do quadro vemos o mesmo computador com o jogo pornô. Os movimentos repetitivos e velozes do jogador adquirem uma gestualidade masturbatória, embora a relação corporal e intersubjetiva do sexo tenha sido abstraída pela mediação da máquina. O que essa combinação de imagens nos diz?
A sequência descrita corresponde à abertura de Como viver na RFA (Leben — BRD, 1990), gravado em 1989 pelo cineasta Harun Farocki, logo às vésperas do processo de reunificação da Alemanha. No restante da narrativa, vemos a malha fina de instituições que governam, por meio de fluxos ininterruptos de modulação, cada esfera da vida cotidiana no país. Ao reunir cenas pedagógicas distintas, de cursos instrucionais, treinamentos, sessões de terapia e testes de produtos, o filme expressa a tendência à vida simulada — e continuamente doutrinada — que rege as relações sociais de um mundo tomado pelo neoliberalismo. A cena do colchão, que remete a outros testes industriais mostrados (a poltrona e a máquina de lavar), ecoa também nas pessoas que são submetidas a contínuos treinamentos e procedimentos de padronização. Não seria essa, afinal, uma das dimensões mais totalizantes da vida, sob o domínio do capitalismo tardio, esse que atravessou, desde a queda do Muro de Berlim, mutações mercantis e tecnológicas ainda mais complexas? Como se o mundo fosse, em sua configuração midiática abrangente, uma instância de preenchimento, com estímulos infinitos, para cada necessidade básica de um indivíduo?
Farocki, que fez parte da militância estudantil da década de 1960, em Berlim Ocidental, estabeleceu ao longo dos anos um projeto sistemático de mapeamento cognitivo das ordenações tecnológicas do mundo, especialmente aquelas que atravessam o campo do olhar. Sua filmografia pode ser entendida como o esforço de compreender criticamente os dispositivos e processos que condicionam a própria possibilidade de ser e agir no mundo. Para isso, ele organiza, a partir da década de 1980, duas frentes principais de trabalho: a observação incansável da realidade, no intuito de apreender alguns aspectos imperceptíveis da sociedade pós-moderna; e a remontagem crítica das imagens do mundo (poderíamos dizer, ensaística).
Como viver na RFA, embora guarde algo da forma do ensaio (por expor as imagens em encadeamentos argumentativos), pode ser situado entre os chamados filmes de observação. Trata-se de um conjunto significativo de obras, produzidas entre 1982 e 2013, que se debruçam sobre situações sem interesse cinematográfico explícito, seja pela escassez de oportunidades de drama, pela dificuldade de condensação do tempo ou pelo elevado grau de padronização. São filmes como Uma imagem (Ein bild, 1983) e Natureza morta (Stilleben, 1987), que observam processos de fabricação de fotografias publicitárias (da Playboy alemã, no primeiro caso, e de estúdios de propaganda, no segundo); O treinamento (Die Schulung, 1987), O que há? (Was ist los?, 1991), O re-treinamento (Die Umschulung, 1994) e A entrevista (Die Bewerbung, 1997), que mostram, assim como Como viver na RFA, dinâmicas de adestramento dos sujeitos no universo corporativo; A aparência (Der Auftritt, 1996), Os construtores dos mundos das compras (Die Schöpfer der Einkaufswelten, 2001), Não sem risco (Nicht ohne Risiko, 2004), Um novo produto (Ein neues Produkt, 2012) e Arquitetos Sauerbruch Hutton (Sauerbruch Hutton Architekten, 2013), filmes que mostram, de maneira geral, reuniões de negociação e de tomada de decisão, no circuito econômico da produção global.
O que fica explícito, no conjunto, é o desejo do diretor de investigar a existência, nos dispositivos contemporâneos, de novas modalidades de controle dos sujeitos e de padronização do mundo, que se pautam principalmente pela antecipação dos gestos e desejos (algo que ocorre, é claro, em múltiplas e intrincadas camadas). Tal dimensão operativa ou performativa — no sentido basilar do termo, a maneira como a linguagem é manuseada para padronizar determinados efeitos — corresponde a uma quebra dos modelos concentracionários filmadas por um documentarista como Wiseman (e estudadas por Farocki na fábrica e na prisão). Em Como viver na RFA, assim como nos filmes de treinamento corporativo, há uma primeira operação de suspensão tácita da negatividade por parte do cineasta, a fim de que ele possa assumir como válido o sistema observado e enfrentá-lo em uma relação imanente. Num segundo momento, contudo, que envolve a emulação formal desse mesmo sistema, as contradições do objeto começam a aparecer. A observação prolongada, associada às ilações sutis da montagem, mostram como a pedagogia corporativa, que pretende ensinar as pessoas a agirem da maneira desejada em cada situação, acaba por se tornar um trabalho de assimilação que violenta o próprio eu do sujeito.
O sujeito é atacado, justamente, nas suas posições de singularidade, pois é toda a sua subjetividade que deve ser adestrada para melhor se adequar a um sistema de produção global. Nada mostra melhor isso do que a própria sequência de créditos de O treinamento: junto à trilha musical estranha, vemos uma imagem computacional de formas humanóides alaranjadas, sem diferenciações entre si, que caminham em meio à paisagem desertificada. É uma metáfora perfeita para a dinâmica de padronização do universo corporativo agenciada pelo instrutor — mas não uma metáfora qualquer, pois ela mobiliza justamente uma imagem sintética, pautada pela lógica da simulação realista. O que vemos surgir em filmes como esse, incluindo Como viver na RFA, é um cerceamento constante das manifestações de vida do sujeito, sobretudo ali onde elas escapam aos diagramas instituídos pela razão instrumental. A ordenação totalizante do mundo, em suas redes de processos e circuitos técnicos (que não deixam de ser os da arte), encarrega-se de podar cada indivíduo daquilo que, nele, constitui um transbordamento — podar, ou, então, capturar e canalizar para outro lugar.
Esse outro lugar, cabe dizer brevemente, é a esfera do consumo. Não basta ao capitalismo avançado se apossar até mesmo das horas de sono dos sujeitos contemporâneos: para o sistema dominante, essa posse precisa ser rentável. Em dois dos filmes que citei antes, vemos maneiras usadas pelas corporações atuais, apoiadas por agências de propaganda e por pesquisas científicas de ponta, para medir e prever cada mínimo movimento dos circuitos de desejo. Em determinado momento de O que há?, por exemplo, um espectador (que parece ser o próprio Farocki), com a mão estendida ironicamente para a tela, tem seus níveis de estímulo medidos por meio de eletrodos, ao assistir trechos de comerciais televisivos. A voz do diretor oferece uma interpretação aberta para o gráfico das medições, que vai surgindo por cima das imagens mostradas na tela. As imagens, destinadas a exibir e vender produtos, delineiam as representações desses produtos com base em instrumentos sofisticados de exame neurológico, a fim de canalizar, no nível mais imediato, os desejos e as emoções dos consumidores em potencial.
Em Os criadores dos mundos das compras, por sua vez, vemos como os shoppings são arquitetados com base em aparelhos exaustivos de medição e controle: um deles rastreia os impulsos do olhar dos sujeitos; outro contabiliza o tráfego de pessoas por cada região do território; um terceiro, ainda, analisa automaticamente perfis de consumo, a fim de otimizar a distribuição dos produtos no supermercado. Para aumentar a compreensão crítica do sistema, Farocki chega até mesmo a entrevistar o analista de sistemas responsável pelo software que examina os perfis de consumo do supermercado. Todo o resto, desde os pacotes temáticos da praça de alimentação até a concepção estética do edifício, torna-se secundário diante dessa codificação incessante do mundo, sob a forma de dados programáveis. Por meio das articulações da montagem, que ligam, dentre outras coisas, os registros das conversas dos arquitetos e executivos, aos softwares de medição, Farocki introduz fissuras de reflexão crítica ao planejamento do mundo para fins de consumo. Vai sem dizer, todavia, que esses problemas basilares da arquitetura e da esfera de produção global são indissociáveis, na atualidade, dos próprios circuitos e espaços de circulação da arte. (A arte que é, sem dúvida, um dos poucos campos que ainda pode restituir ao ser no mundo alguma dose de intensidade passional).
Se nos deslocarmos novamente ao universo do trabalho, cabe apontar que Farocki se preocupou frequentemente, em especial até o final dos anos 1970, em filmar o gesto do trabalhador na fábrica e em representar os espaços da produção industrial. Nas décadas de 1980 e 1990, ele ainda aborda essa temática, mostrando o processo de ocultamento do trabalho e de expurgação da figura do operário, decorrente grosso modo dos avanços tecnológicos das máquinas. A partir desse ponto, também, os problemas marxistas de alienação e exploração, bem como o modelo disciplinar da fábrica e da prisão, são recobertos labirinticamente pelos princípios da “economia criativa” que diluem, com suas novas práticas de modulação subjetiva e ordenação do tempo, as fronteiras entre a vida e o trabalho. (Onde foi parar, afinal, o louvável direito à preguiça que era defendido com tanto brilho por Lafargue, cem anos antes?).
Ao mesmo tempo, Farocki explicita em seus filmes o modo como a própria subjetividade é capturada sistematicamente, por meio de estratégias de controle e medição, no circuito totalizante da produção e do consumo global. Nesse contexto, o campo de manifestações passionais do sujeito se torna cada vez mais limitado; a paixão resta empobrecida, enfraquecida, adestrada, perde justamente o caráter de excesso que a caracterizaria. Resta, é claro, o desassujeitamento do sujeito, conclamado por Foucault, a inservidão voluntária, ou então o retorno ao singular da experiência e ao cosmológico, ao mundo propriamente dito. Mas e a paixão? Terá ela forças de interromper o movimento de uma racionalização que deseja, sob as diversas modalidades da técnica, tomar posse do mundo, em sua totalidade? Guardando, sobre isso, mais dúvidas do que respostas (e tentando fazer rima com os escritórios filmados por Farocki, espaços sufocados, pouco propícios à paixão), opto por terminar este ensaio com uma coleção de imagens incontidas, com gestos de revolta, desobediência e insatisfação: https://www.youtube.com/watch?v=aD4thXRn80M