Karioka – Takumã Kuikuro, 2014

Por Geo Abreu

“Takumã Kuikuro leaves his village in Alto-Xingu, Mato Grosso, with his wife and children, to live in Rio de Janeiro for a while”.[1]

Ta

Ku

Ti

Ü

Ka

Kagihutü / aʒiutˈ

Carioca / kaɾjˈɔkɐ /[2]

Imagens do Rio de Janeiro visto de Niterói, Praia de Icaraí, Museu de Arte Contemporânea, aeronave, Oscar Niemeyer. Das imagens conhecidas passamos a uma voz que preenche fortemente o vazio na tela, tomando a atenção.

A língua Kuikuro, do ramo Karib, vibra em materialidade e se impõe trilhando uma linha condutora entre nós e as imagens. A legenda que acompanha parece acessória a certa altura. Poderíamos prescindir dela? Na paisagem sonora do filme, além do barulho do mar e da música de Carlos Malta e da banda Pife Muderno, somos levados por uma cadência cuja mecânica necessita estalar a língua no céu da boca e compor fonemas em T e K, gerando palavras que ganham presença e se aproximam de nós como uma antiga canção de ninar, distante na memória, salva em algum lugar do corpo como arquivo.

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Tomada por esse dispositivo que crio na relação com o filme (e que me mantem alerta), sigo observando a cidade conhecida sendo descrita por um homem de sunga vermelha, sentado em algo muito baixo, em conversa com uma mulher, que é mãe e avó. Sorrio quando ela diz ter entendido o que significa kagihutü (G com som de R; T+U+trema soa como T+A+~; sílaba final forte; pegada gutural): pessoa que nasce na cidade do Rio de Janeiro.

Naquela conversa algo se revela sobre o termo que nomeia o filme e que eles apreendem como revelação dupla sobre a natureza mesma do lugar e de quem nasce lá. Será que a palavra carrega algo de força ou segredo compartilhado, encapsulado nesses fonemas, e por isso fascina tanto o cineasta e seus interlocutores? Entrevemos alguma relação com o movimento das águas doces, até porque Carioca Era um Rio[3] cuja nascente está esquecida em meio a esgoto e entulhos.

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No episódio sobre a estranheza da água salgada – que não lava e serve apenas para brincar -, um primo entra na conversa e traz para jogo a definição mais simbólica e distante do meu quadro de referências que já vi sobre a cidade: o Rio de Janeiro como cidade “colar de miçangas.”  Banhos de mar nos permitem acumular miçangas o suficiente e levá-las para casa. Essa ideia de acúmulo aponta o que exatamente? Memórias? Beleza? Algo conhecido que se aproxima como fricção entre a água arenosa e o sensorial das miçangas sobre a pele? Nenhuma das alternativas anteriores ou talvez todas elas: miçangas são feitas de diversos materiais como pedra, ossos, conchas, vidro[4]. Tentar a aproximação desse sistema cognitivo via conhecimento branco me leva a usar ferramentas ligadas à transcendência e me fazem cair sentada de bunda na areia.

Um tanto derrotada, desisto de acompanhar o relato audiovisual da viagem da família Kuikuro via banda sonora e retorno à prática das imagens em busca de algum sucesso em me aproximar de Takumã e sua câmera.

//Desplugo a cabeça oca do aparelho sonoro e ajusto as lentes.//

Ainda na conversa que nos conduz pelo filme, vemos mãe e filho falando sobre o ruído que existe na produção de imagens do Rio de Janeiro.  Uma defasagem produzida no confronto entre discurso jornalístico, via TV, e jogos de ficção. Entre noticiários e novelas, favelas, violência e tragédias se contrapõem às praias do Leblon e Ipanema, que parecem bonitas – e são mesmo, alguém sublinha, enquanto vemos crianças brincando na areia com o mar ao fundo. Mais uma vez os cariocas enquadrados entre as figuras de mar e morro.

A necessidade de produção de sentidos através de imagens, do entendimento dessa engenharia, leva Takumã ao Rio de Janeiro em companhia da esposa e dos filhos. Este curta é um trabalho seu de conclusão do curso de Montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

Num dos momentos mais poéticos do filme, nos afastamos da posição de importância de Takumã como cineasta Kuikuro e seguimos, via montagem, os pensamentos de sua filha, a menininha de rosto absorto e cabelos ao vento que, retornando à sua aldeia, mantém em lembrança os momentos de brincadeiras com adultos e crianças da cidade, o episódio com a música de Anitta, o banho de mar com os irmãos. E assim nos encontramos frente a um cineasta apenas, em exercício livre, treinando esta outra gramática que quer manejar. Selamos um pacto sem palavras.

A mediação que Takumã exerce abre frentes e lança no tabuleiro do jogo cinema outras chaves de interpretação do mundo via imagens e sons, trazendo para o cenário da encenação frente às câmeras sua mãe e irmãos, pai, avô, além da língua Kuikuro. Nesse exercício as forças parecem seguir duas linhas diferentes: numa, o cineasta que deve representar sua aldeia em circuitos de legitimação artística; noutra o simples aprendiz de ofício, aquele do olhar em formação, passível de erros e acertos, e sobretudo, livre para experimentar e criar formatos. No choque entre essas duas possibilidades alguns limites de ação se impõem a ele e sua câmera? Como produzir os desvios ou respiros?

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As escolhas estão com ele. De alguma forma, embalada pelo ritmo metálico e robusto das palavras em Kuikuro me vem a vontade de acompanhar sua trajetória e pensar sobre ela, elaborar estratégias de aproximação e distância em gestos bem conhecidos e naturais, como numa brincadeira, a que tentei produzir no começo do texto, quando o reconheci via audição como alguém tão próximo quanto um primo que eu não (ou)via há tempos.

[1] Sinopse do filme na plataforma Mubi.

[2] Transcrições fonéticas feitas via plataforma online. A biblioteca da ferramenta não possui a opção “kuikuro” como idioma.

[3] Carioca Era Um Rio, Filme de Simplício Neto. Rio de Janeiro, 2013. Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=Uzj-9m4ZYW

[4] Trecho retirado do verbete Miçanga na Wikipedia

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