Por Lucas Saturnino
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
(Herberto Hélder)
O poeta Herberto Hélder leu algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão? O dom da consciência nos sujeita a tentar encontrar algum sentido para a vida e o fato da morte instiga balanços. Quem foi? O que fez? O que deixa ou leva? A sua iminência incontornável suscita medo, reflexão ou mesmo fascínio. Se o que a sucede é o maior dos mistérios, talvez só haja uma certeza quanto ao prolongamento da vida após a morte: além do tácito testemunho do mundo, a permanência dos que partem na memória dos que ficam.
O encontro de três pessoas que porventura jamais se encontrariam é o mote de Something Useful (İşe Yarar Bir Şey, 2017), da cineasta turca Pelin Esmer. Na estação de trem, duas mulheres cruzam-se por acaso, intromissão, simpatia, curiosidade genuína pelo outro e receptividade ao amparo oferecido. Com cerca de 40 anos, a advogada e poeta Leyla é duas décadas mais velha do que a enfermeira Canan. Elas se conhecem em diferentes estágios da vida, conquanto igualmente suspensas entre o dia em que nasceram e aquele em que irão morrer. Something Useful registra estados pendulares, acompanha almas em movimento, jornadas introspectivas que se entrelaçarão. O destino de uma é o presente do passado (a reunião comemorativa dos 25 anos de formatura da turma do secundário de Leyla), enquanto a outra tem um encontro marcado com a morte (a pedido de um médico que trabalha consigo, Canan se comprometeu a ajudar um homem que deseja morrer).
O homem é Yavuz, que 6 anos antes sofreu um acidente e ficou paralisado, sem os movimentos do pescoço para baixo. Ele havia pedido a um amigo íntimo, o médico com quem trabalha Canan, que o deixasse morrer, mas seu amigo, por amá-lo tanto, foi incapaz de realizar a eutanásia com as próprias mãos. Após muita insistência, e sentindo a firmeza da resolução de Yavuz, ele consentiu em arrumar outra pessoa que pudesse consumar o pedido fúnebre — uma jovem enfermeira precisando de dinheiro. No trem que atravessa o país e a noite, Canan conta a história a Leyla, que se propõe a acompanhá-la.
A narrativa é sucinta e precisa — e as encruzilhadas existenciais se colocam sem alarde. São três personagens cujo encontro os deixa profundamente afetados uns pelos outros e Esmer estrutura a obra em torno das reações dos atores principais (Basak Köklükaya, Öykü Karayel e Yigit Özsener, magistrais). A câmera muito próxima e atenta às suas expressões faciais, sensíveis e eloquentes. Aos sorrisos gentis de Köklükaya, à perceptível aflição de Karayel e aos olhos penetrantes de Özsener. Um filme fora de moda? Talvez, o que pode explicar o pouco espaço que lhe foi concedido no circuito de festivais.
A câmera procura gestos mundanos. Como Leyla esperando na fila do banheiro ou pedindo passagem para sair do seu lugar no trem e a senhora ao lado se espremendo no assento sem se levantar. Ou a dificuldade das personagens em chamar um táxi. Quando as duas chegam na porta do prédio de Yavuz, são necessários 4 minutos de filme (entre hesitações e campainhas) até que a primeira suba e entre no apartamento. O trabalho do diretor de fotografia Gökhan Tiryaki (conhecido por sua colaboração com Nuri Bilge Ceylan) é digno de destaque, em especial no tocante à viagem de trem, à captura dos humores refletidos gestualmente e ao jogo visual e simbólico com espelhos e reflexos.
É belo o momento em que Yavuz vê Leyla pela primeira vez: “Eu me irei com a benção de uma poeta!”. Leyla, sentindo-se subitamente insegura ao encontrar-se diante do objeto de sua irrefreável curiosidade, observando do alto da janela a indeterminação de Canan em subir, torcendo para não ser abandonada. E, logo em seguida, sendo acalmada pela encantadora música da vizinha, professora de violoncelo — a arte que, ao menos aqui, alivia as agonias e põe as angústias em perspectiva, perpetuando-se no tempo.
Nesse filme sobre a morte, crenças religiosas não fazem parte da equação. Ninguém se importa com isso. Something Useful nos chega da Turquia secular — a segunda metade se passa em Izmir, uma das mais antigas cidades portuárias do Mediterrâneo. A presença da religião só se manifesta da maneira mais explícita quando o funcionário do trem fecha repentinamente as cortinas da janela de Leyla, interrompendo o fluxo de consciência dela, sob o pretexto de evitar que pedras sejam arremessadas no vidro — “Porque eu sou uma mulher bebendo cerveja?”, confronta-lhe a personagem.
E não é o seu único desgosto em relação ao estado das coisas: Leyla adora contar e ouvir histórias, mas é irredutível quanto a não dar moral para o político que entra no café pedindo votos; ela se levanta e deixa o estabelecimento antes que ele sequer tenha a oportunidade de abordá-la — o que explica a admiração da personagem pelos grafiteiros que, de modo rebelde, inscrevem a sua expressão subjetiva na paisagem do país.
Se há, portanto, uma dimensão, digamos, transcendental em Something Useful, ela está nas conversas que comovem, nos encontros que transformam, na afabilidade com que os personagens se abrem intimamente aos outros. O esquema cinematográfico operado por Esmer consiste em defrontar o registro dos gestos mais cotidianos com a perspectiva extasiante das conversas que trazem a possibilidade do sublime para um dia qualquer.
Something Useful também é uma inventiva variação de Janela Indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954) — à exemplo do grande plano-sequência de 10 minutos do jantar comemorativo. Leyla e Yavuz observam o mundo através das janelas à sua frente, fronteiras mediadoras entre interiores e exteriores. A diferença entre um e outro é uma questão de mobilidade, que literalmente impõe um limite no horizonte de possibilidades de Yavuz, incapaz de ir atrás das histórias como faz Leyla. Ele não é mais capaz de exercitar a própria curiosidade. E ela, numa pequena gafe de sinceridade desmedida, afirma que perder a curiosidade equivaleria a estar morta.
Assim como James Stewart no clássico de Hitchcock, Yavuz se encontra imobilizado, mas pior: em caráter permanente. A sua janela, de frente para a socialmente estimulante movimentação da bela beira de mar de Izmir, foi o que lhe restou para seus olhos verem em primeira mão — “assistindo vidas saudáveis”. Leyla, ao contrário, está em constante deslocamento, observando as pessoas ao redor, divagando, especulando, fascinando-se — desde o início na estação, quando o desenho de som se abre dos pensamentos interiores que permeiam a mente dela para os murmúrios ambientes do mundo.
A poeta, contudo, não sai por aí pescando histórias sem gerar tensão. Canan questiona as motivações de Leyla: “Uma jovem enfermeira precisando de dinheiro e um homem aleijado querendo morrer devem render um bom poema, não?”. Surge a questão entre eles: o artista instrumentaliza a curiosidade, as experiências, a compaixão? Voltemos ao primeiro plano do filme: no princípio, a encenação é frontal e mistura-se com a matéria bruta, sendo necessário um enquadramento para formalizar o ponto de vista desejado.
Leyla vai procurando as palavras, experimentando-as, podando o poema. “Você se inspira na vida real?”, pergunta Canan, enquanto as duas brincam de decifrar sombras no teto do quarto de hotel. Something Useful fala de morte para tratar da vida e reflete sobre ambas para debater arte. O cinema de Esmer é um cinema de personagens: Leyla, a poeta consagrada; e Yavuz, o leitor que não conseguiu estabelecer-se como autor. Ela trabalha como advogada, para pagar as contas e também porque queria fazer “algo de útil”. “A poesia não é útil o suficiente?”, rebate ele que, contemplando o próprio fim, se encarrega de deixar as contradições do ser com os vivos que continuarão a alimentá-las.
Já Canan acredita não entender de poesia. Quem lida com a morte todos os dias não precisa ler sobre coisas fúnebres. Ela sonha em ser atriz, o que, nota-se, certamente não é tão útil quanto o trabalho de enfermeira. O filme tem como base a disposição dramática de dilemas acerca da célebre inutilidade da arte (chamemo-la só aparente ou não) e de qual proveito se tira de existir por existir. “O que eu faria no lugar deles?”, sentimos Leyla formular em pensamento, sem exprimir em voz alta, tal qual uma espectadora exemplar.
No belo poema da conclusão, Leyla escreve sobre “uma ansiedade que remonta à infância”, motivada por palavras que lhe tiram o sono desde a mais tenra idade, como que se referindo à dificuldade de se expressar, encontrar os termos adequados. Yavuz julga que Leyla costuma manejar as palavras para se esconder atrás delas. Mas não naquele momento, pois é justamente a franqueza que faz o encontro dos três ser mágico. E então viver se torna uma questão de prolongar as conversas que valem a pena.
“Hoje não bastou e amanhã você quer fazer algo útil de novo?”. Algo útil, afinal, talvez seja a paixão pelas coisas gerais, como escreve Hélder, ou a paixão pelo poder de alguns encontros resplandecerem frente ao caos, como mostra Esmer. Ao fim, antes que o lirismo inútil da música de Bach dê espaço aos sons ambientes da cidade em dia útil e as personagens voltem se mesclar com a multidão, Leyla lança aquele último olhar que se dedica a registrar uma memória derradeira do que virá a fenecer em instantes.
Como não temos acesso ao contracampo, esse olhar também se dirige a nós, incluindo-nos na conversa, confrontando-nos com as mesmas inquietações dos personagens. A morte, conceito tão intangível quanto concreto, é a epítome do que todos sabemos se tratar, sem que ninguém realmente compreenda o que representa. De qualquer forma, na expressão saudosa de Leyla transparece a sua resposta possível para aquela que é a questão decisiva em tributo à memória dos que partiram: sim, tinha paixão.