Por Chico Torres
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção
(Tom Zé, Parque Industrial)
Perguntaram a Dom Élder sobre a situação brasileira. Resposta: eu sei, tu sabes, eles sabem, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem
(fala extraída de Matou a família e foi ao cinema de Júlio Bressane)
As utopias de massas do Ocidente e da União Soviética do século XX sempre tiveram a modernização e o progresso como suas metas. Os ensejos máximos dessas duas sociedades opostas estavam calcados nesses elementos em comum: a ideia de avanço civilizacional e de harmonia com o meio urbano. Esse desejo está registrado nos filmes desde a invenção do cinema, que remonta à segunda metade do século XIX. No cinema de atrações, a cidade e o indivíduo urbano são temas privilegiados, à medida que tudo se configura como novidade, a definição própria do moderno. Assim, cidade e cinema se refletem num jogo harmonioso que chega para confirmar o triunfo das massas.
Por outro lado, essas utopias sempre exibiram a sua face oposta, a fantasmagoria que habita as cidades. Buster Keaton e Dziga Vertov trouxeram para seus filmes o aspecto encantado, mas, ao mesmo tempo, perigoso e disforme presente nesse contexto. O indivíduo, fora da ideia de comunidade, agora vive a realidade fragmentada e a sensação de perigo iminente. A atenção, hiperestimulada pela velocidade de tudo, não consegue se deter por muito tempo e a odisseia humana se realiza na manutenção da sobrevivência em meio ao concreto e às ferragens. Em um contexto mais específico que acaba por firmar, no cinema, as diferenças ideológicas desses dois tipos de sociedade, é possível apontar também a constante tematização do conflito simbolizado em enredos fantasiosos. A partir dos anos 1920, a URSS realizou uma série de filmes de ficção científica, produzindo um tipo de mensagem que é a do reconhecimento e eliminação do inimigo externo. Já no mundo ocidental, sobretudo nos EUA pós Segunda Guerra, surgem filmes de catástrofe e o inimigo é tratado da mesma maneira.
No Brasil, o lastro desenvolvimentista também surge como utopia, como possibilidade da construção de uma grande nação capitalista. De modo sintético, Vargas, Kubitschek e o período da ditadura dos anos sessenta e setenta levantaram essa bandeira, seja para o bem ou para o mal. No campo cultural, havia uma produção de uma arte de esquerda bastante significativa que respondia a esse ideal sustentando no desenvolvimento tecnológico. Dentro desse ambiente artístico, principalmente nos anos 1960, as utopias do capitalismo eram criticadas em nome das supostas raízes autênticas da cultura brasileira. O operariado e os trabalhadores do campo, ou o sertanejo simples e desassistido se tornaram tema de canções que até hoje fazem parte do imaginário popular.
No cinema, a coisa não se deu de forma muito diferente. Os temas campesinos e urbanos se desenvolviam em forma de protesto e revalorização do povo dentro do primeiro impulso do Cinema Novo, ainda que, em seus desdobramentos, esses temas foram repensados de modo mais problematizado. De fato, o Cinema Novo dos idos da década de 1960 escancara os problemas de uma esquerda nacionalista fracassada, perdida em estereótipos que pouco a pouco foram se revelando ultrapassados e arbitrários. Na figura emblemática de Glauber Rocha, temos a complexa realidade nacional virada pelo avesso, mas ainda sob um viés utópico que, ao revelar as profundas mazelas do Brasil como resposta a uma apropriação elitista da cultura popular, resultam em uma outra ideia de nação (Cacá Diegues afirma que o Cinema novo inventou o Brasil), através de um novo olhar em relação aos símbolos nacionais, alegorizados agora em meio ao turbilhão dos acontecimentos catastróficos da ditadura militar. Ao revelar a crise da esquerda através de uma iconoclastia pujante, Glauber termina por exigir uma nova revolução cultural e, por essa razão, seu cinema impõe a si mesmo uma extrema responsabilidade política.
Um olhar desprendido de grandes ensejos revolucionários na arte, e ao mesmo tempo distante da indústria do entretenimento da época, só é verdadeiramente desenvolvido pelos artistas marginais dos anos 1960. José Agrippino de Paula, com o seu romance monolítico e cheio de figuras hollywoodianas PanAmérica, José Mojica Marins, inaugurando o cinema de horror no Brasil com Esta noite levarei a tua alma (1964), em parte o Tropicalismo, com a cultura do desbunde e uma retomada inventiva do antropofagismo de Oswald, são apenas alguns nomes que movimentaram ideias que estavam muito longe da cartilha da esquerda nacionalista, mas que nem por isso agradavam a direita desenvolvimentista. Por outro lado, é importante apontar que, apesar desse desprendimento em relação ao modus operandi da esquerda, esses artistas não estavam criando obras estritamente banais e vazias de crítica social. O que demarcava realmente a diferença com aquilo que havia sido feito antes era o fato de que essa arte marginal sentia-se finalmente livre para aglutinar em suas produções elementos da cultura de massas, deixando que diversas contradições surgidas pela condição moderna invadissem as obras, o que era algo inédito no país. Quero destacar, para dar início a um maior diálogo com essas questões em relação ao cinema, o filme de Júlio Bressane, Matou a família e foi ao cinema, de 1969.
Essa obra, junto com os filmes que Sganzerla realizara até então, parece inaugurar um tipo de estética cinematográfica radical no Brasil. Nela encontramos uma espécie de desencantamento ideológico e precariedade técnica que mais do que crítica e reflexiva, é cínica, mas nem por isso vazia de profundidade psicológica e intelectual. O cinismo se dá por uma representação da cidade e seus habitantes dentro de um ambiente de violência, fluidez e ideia de improviso que dão ao filme um tom delirante, exibindo a família, a cidade e o país através de um olhar assumidamente tragicômico.
Por outro lado, existe a presença de uma sobriedade que parece ter pensado com cuidado como exibir aquela loucura e indeterminação presentes nos aspectos técnicos do filme e nos personagens (o seu elenco principal, um ator e duas atrizes apenas, representa vários papéis, havendo, nessa repetição fisionômica, diversas sugestões conectivas entre todos eles). O início do filme já demarca bem esses dois universos que estão amalgamados: vemos, em close, o rosto das duas personagens femininas, como se pousassem despretensiosamente para a câmera em uma bela manhã de sol. Logo em seguida, de maneira abrupta, há um plano mal enquadrado de um fragmento barulhento da cidade que exibe um outdoor da Coca-Cola. Esse tipo de ironia é uma das tônicas principais do filme, como se o humor e a violência fossem, na verdade, os únicos sentimentos possíveis diante do absurdo.
Ante a banalidade da violência presente em toda a obra, já indicada em seu título, vemos se desenrolar uma série de problemáticas concernentes ao cenário político, econômico e social da época. O filme, que tem no vazio existencial e na moral conservadora seus possíveis temas norteadores, revela que a perturbação psíquica e a violência extrema dos personagens surgem em consequência desse cenário. Mas nenhuma dessas críticas obedece a cartilhas, pelo contrário, são exibidas através de um tipo de distanciamento que faz com que todas as mazelas expostas sejam vistas como o espetáculo absurdo que são. Esse cinismo e distanciamento conferem à obra uma estranha e incômoda leveza, como se tudo estivesse sendo filmado diante de um saudável niilismo que a tudo compreende, mas que não pretende interferir em nada.
Se observarmos mais atentamente para o modo como a violência é representada no filme, é possível entendê-la como uma resposta ao estilo de vida que se desenvolveu dentro de uma sociedade moralista e, ao mesmo tempo, desencantada. Navalha, machado, faca, revolver e o empalamento da tortura: uma variedade de instrumentos para demonstrar as diversas facetas dessa violência. O homem que comete o primeiro assassinato, matando os pais dentro do apartamento, se mostra como uma criança entendiada que, para passar o tempo, resolve matar a família. O casal de mulheres mata a mãe repressora de uma delas, apenas porque a mulher não concordava com o romance das duas jovens; um homem comete feminicídio com uma faca dentro de um barraco cheio de crianças em situação de miséria; agentes da ditadura torturam até a morte um homem em uma sala suja; outro feminicídio, agora com um revólver; por fim, as duas irmãs, isoladas em um sítio, se matam como que por brincadeira, usando as armas do marido de uma delas. Todos os conflitos se resolvem com algum tipo de massacre que se dá na fetichização da arma. Os cenários são diversos, mas sob esse véu de psicopatia e morte, há sempre a presença da opressão, seja ela social, política ou econômica. Todas as mortes envolvem uma espécie de eliminação da família e da tradição, como também a eliminação dos que resistem a essas instituições do estado burguês.
O que torna o filme de Bressane tão original e politicamente interessante é o modo como ele trata essas questões de maneira cômica e subversiva, mas sem nunca perder de vista um olhar denunciador e trágico. Ver a realidade brasileira representada através desse caos organizado mostra o quanto o diretor estava consciente ao construir a sua linguagem cinematográfica, porque se esta parece ser alienada, enlouquecida e violenta, só o é porque assim também são os indivíduos que a modernidade e seus modelos utópicos conseguiram produzir. Não há mais espaços para idealizações, as massas são substituídas por anônimos perdidos no ambiente hostil da cidade.
A cena final de Matou a família foi ao cinema, em que as jovens rastejam baleadas em seus últimos instantes de vida enquanto se mantêm agarradas em seus revólveres, ao mesmo tempo que ouvimos em alto e bom som Ninguém vai tirar você de mim, de Roberto Carlos, é uma das cenas mais significativas do cinema nacional daquele período sombrio (e que insiste em se repetir), revelando as contradições de uma sociedade desiludida em seu vazio existencial, suas armas e sua alienação.