Por Gabriel Papaléo
Mesmo com uma estética mais afiliada ao cinema experimental, o curta Eu sou a destruição acaba soando também seguro nas suas intenções ao construir apenas através de imagens encontradas – em filmes, em programas de televisão, em vídeos “amadores” – um sentido catártico diante da fala do então ministro da cultura Roberto Alvim no pronunciamento oficial no qual se afinou explicitamente com uma estética nazista para relatar seus planos para o futuro. Iniciando em beijos vários do cinema para então prosseguir em diversas formas de corrupção e perda de contato com o humano, as imagens desafiadoras do filme acabam atreladas demais a uma tendência da cinefilia criadora artística em repousar seus sentidos narrativos de interpretação em obras que melhor articular e desarmam o espectador de certezas – e não é a primeira nem a segunda vez que vejo a proclamação incendiária do personagem em O Diabo, Provavelmente virar força motriz (e até mesmo o título) de um curta de imagens encontradas.
Às vezes parece que o mero assistir e organizar dessas ideias e imagens basta para a construção de novos sentidos, e novamente nem sempre é o caso. As possibilidades que o digital proporcionou ao expandir o acesso às imagens já existentes para novos usos e linhas de pensamento são fenomenais e diante de olhos atentos pode criar filmografias inteiras de percepções novas sobre imagens antigas – como no caso de Harun Farocki, ele mesmo com um filme passando em retrospectiva no CineBH desse ano -, mas também aumenta a quantidade de filmes que parecem existir apenas na base da referência. (ou reverência, o que acaba pior, se pensarmos que a coisa mais violenta que uma imagem pode sofrer é sua sacralização.)
Quando essa disposição ao confronto se vê enervada pelo mistério de uma organização quase profética de ideias em imagens, o revide político que se almeja vem na figura do espanto, e é nesse lugar que Grace Passô opera seu República. O setting simples do filme de apartamento, muito em razão pela quarentena em decorrência da pandemia, traz a dramaturgia minimalista de Passô para se concentrar apenas em seu rosto, nas percepções das mudanças sutis diante da recepção de uma notícia chocante sobre a realidade. Nesse sentido o filme dialoga com Vaga Carne, o experimento tanto teatral quanto audiovisual de Passô – e filmado por Ricardo Alves Jr. -, que usava do arsenal de sua voz para evocar o pesadelo de explorações corporais abstratas contadas com violência. República é mais contido, mas não abre mão das surpresas na encenação, especialmente ao tocar numa metalinguagem que poderia desarmar as intenções diretas da fábula contada apenas no diálogo ao telefone, mas que escapa de um comentário reducionista para alçar a ficção a voos mais desafiadores e combativos.
A única imagem externa do filme, a vista distante de uma personagem a praguejar feroz na rua noturna, é bem forte no seu intuito de construir uma São Paulo de madrugada, fantasma, habitada pelas condenadas. Esse diálogo se expande com a revelação final do sonho brasileiro, desse alívio momentâneo que vira uma raiva incontida, cujo mistério da imagem inicial dirigida ao colonizador que assiste encara o duro paralelo da imagem final, na qual a testemunha da violência dos colonos grita frustrada que “o meu país nunca existiu”. Passô se propõe um difícil enigma, de encarar o espaço doméstico banal e o localizando com uma unidade dramática apenas, mas como já visto em Vaga Carne é com essas limitações que seu texto esgarça possibilidades, e o telefonema amargurado vira um estudado relatório do emocional instável do ano perdido, refém do desarranjo das autoridades, carente das profecias.