Por João Pedro Faro
O novo filme de Abbas Fahdel, Pão Amargo, realiza blocos de encenações cotidianas dentro de um campo de refugiados sírios no Líbano. Fahdel adentra o terreno ocupado pelo grupo imigrante, localizado entre um conjunto de vales e uma movimentada estrada, a partir dessa premissa de intromissão fílmica, causando ao espaço uma movimentação em torno da câmera que acaba por forjar diálogos e situações propícias aos seus interesses mais propriamente documentais.
Existe uma apresentação de conflitos íntimos de determinados personagens que discorrem através de situações claramente encenadas, possibilitando uma espécie de panorama interrogativo. Ele cria perguntas invisíveis que serão respondidas de forma indireta pela encenação dos refugiados, em diálogos expositivos que apontam situações como exploração de sua mão de obra, dificuldades em se alojar nas limitadas tendas, tédio e desesperança. Ou seja, o processo de Fahdel redireciona a conflituosa relação entre câmera e entrevistado, oferecendo uma possibilidade de criação de cena um pouco mais complexa, onde questões são respondidas sem que haja uma clara interrogação jornalística por trás das câmeras. Seu mote operacional permite ao grupo que acompanha uma ativa participação em um processo fílmico expansivo, que cria enquadramentos bem compostos e os isola no quadro, ao mesmo tempo que não deixa de investiga-los, não deixa de contribuir para a propagação de suas falas e de seus conflitos. Ao coloca-los nessa posição, onde são atores de si mesmos, Fahdel cria as imagens necessárias para que se construa um projeto documental rico na exibição do pacto entre quem filma e quem está sendo filmado. É assim que vemos momentos como um grupo de mulheres do campo trabalhando em uma plantação e reclamando de seus salários, um pai e um filho que discutem a demora para a preparação de um casamento, o dono de uma venda de produtos que reclama dos fiados com um supervisor, entre outros blocos de cena que arranjam situações ordinárias e seus protagonistas colocando a entrevista integrada à ação.
É justamente a relação entre o coletivo e o espaço que está no centro de todas as questões que compõe Pão Amargo. Entre um grupo de pessoas que tiveram suas casas destruídas pela guerra e que tentam, diariamente, construir alguma estabilidade dentro das limitações do lugar que ocupam, Fahdel registra imagens que colocam em um mesmo plano os moradores do campo, o campo e o sítio que ele se insere. Há essa constância de planos gerais que marcam desde as montanhas no fundo da paisagem, descendo para as tendas na beira de estrada e acabando nos moradores em suas tarefas diárias. O escopo sempre tenta englobar uma grande quantidade de fluxos imagéticos que se comunicam diretamente em um espaço onde a vida é construída em tamanho reduzido. Onde os elementos, sejam eles pessoas, casas, decorações ou animais, convivem em um intenso agrupamento, impossibilitado de se expandir. A câmera abre e tenta conseguir encaixar tudo isso enquanto ainda continua a captar suas falas e gestos, em conformidade com toda a gambiarra necessária para a sobrevivência de um grupo à margem.
No único momento em que permite que um personagem fale para a câmera, um refugiado que empilha repolhos em um caminhão esbraveja para a lente: “Que Deus amaldiçoe aqueles que destruíram nosso país”. Cedendo à potência de uma espontaneidade, mesmo dentro de um processo fílmico tão próprio e tão fechado, Fahdel só reafirma os esqueletos de Pão Amargo. Realizar, dentro de um grupo de pessoas em estado de desesperança, isolamento e incerteza, um encontro com um aparelho cinematográfico que não busque extrair dele uma experiência, pelo contrário, decide adicioná-los uma. Uma encenação criada e desenvolvida pelo pacto.