Por Bruno Pires
Jorge Sanjinés no início dos anos 60 começa a produzir uma série de filmes dentro de um coletivo tardiamente denomidado Ukamau, que buscava um cinema de identidade nacional boliviana por via da cultura andina. Para o grupo, era menos importante circular nos festivais europeus que viajar o país exibindo seus filmes em zonas mineiras e comunidades indígenas, recebendo um parecer daqueles que eram os reais protagonistas de suas histórias. O que nasce de uma vontade de se fazer “un cine junto al Pueblo” tornou-se uma das mais eficientes formas de livrar-se de amarras eurocêntricas e produzir algumas das obras mais peculiares na filmografia mundial. O índio no cinema latino-americano deixa de ser Dolores del Río, estrela de Hollywood, e converte-se em Benedicta Huanca, aimará cujo cotidiano e luta é o mesmo que o exibido em Ukamau (1966) e Sangue do Condor (1969).
Os primeiros minutos de Ukamau, primeiro longa-metragem de Sanjinés, revelam a forte integração entre um povo e sua terra, relação mais primordial da história humana. Sanjinés faz questão de enfatizar a beleza estética da idílica Ilha do Sol no lago Titicaca, lar do protagonista Andrés e sua esposa Sabina, um local livre de estragos que resiste à cultura ocidental. Desde essas primeiras sequências há o desejo do diretor em finalmente revelar ao mundo e à Bolívia o povo indígena, que, apesar de maioria, segue vivendo como uma nação clandestina dentro de seu próprio território, incapaz de serem reconhecidos ali dentro. O caráter documental do filme é quebrado assim que esse equilíbrio é rompido: Sabina, numa tentativa de estupro, é assassinada pelo mestiço Ramos enquanto Andrés está fora de casa, o que incentiva a vingança por parte de seu marido.
Este maniqueísmo entre o indígena e aquele influenciado pela cultura branca é o que dita o rumo do filme: a vida comunitária andina em oposição ao individualismo de Ramos que deflagra um bom-mocismo por parte do protagonista. Apesar de já próximo da vivência andina, Ukamau ainda é muito próximo dos padrões de um faroeste, principalmente por uma visão dicotômica radical que se traduz no anti-heroico Andrés adiando sua revanche contra Ramos, que passa toda a duração do longa vivendo na ansiedade de ser pego pelo índio. Apesar de já haverem esforços de integrar o indígena à cinematografia nacional, ainda há forte colonialismos no olhar de Sanjinés, o que se deve principalmente à expressão de toda uma comunidade em um único personagem, algo que será gradativamente abandonado em sua carreira, havendo cada vez mais participação do próprio povo em tela. Ukamau segue sendo a vingança de um homem só, e ao individualismo não resta espaço na filmografia de Sanjinés, refletido nos dois últimos planos do filme, um primeiríssimo de Andrés após assassinar Ramos, e um geral, que será muito mais frequente dali em diante.
Sangue do Condor, segundo longa do diretor, é conduzido em duas narrativas paralelas dividas por uma cena: a tentativa de assassinato do quíchua Ignácio, alvejado pela polícia. A trama relata o porquê dele ter sido alvo dos tiros, e também a tentativa de salvá-lo vinda de seu irmão Sixto, que hoje mora em La Paz, trabalha em uma fábrica e renega a cultura indígena. Apesar de ser avesso às suas raízes, é incapaz de escondê-las, como na sua primeira aparição onde é chamado de índio bruto por um homem branco e prontamente rebate “¡no soy indio, carajo!”. O decorrer de sua história será estritamente ligada ao desencanto com o mundo ocidental, a impossibilidade de conseguir dinheiro para operação do irmão, e a inevitável revolta contra sua defasada utopia.
A ideia de Sangue do Condor surgiu devido uma série de denúncias contra o Corpo de Paz, agência federal criada pelo presidente Kennedy para auxiliar países do terceiro mundo. Segundo muitos bolivianos, aqueles americanos estavam há quase uma década no país esterilizando indígenas, fato comprovado quatro anos após o lançamento do filme, que, segundo Sanjinés, foi forte testemunho da agência falsa-humanitária dos ianques. Essa história foi traduzida na rebelião de Ignácio e sua vila contra os gringos, fato que levou à sua quase morte.
Sendo real ou não, a tentativa de apagar os índios da história do país era uma realidade, fruto de um neocolonialismo reforçado durante os anos 60, cujo plano era embranquecer o país racial e culturalmente. Não por menos, as duas cartelas que abrem o filme são uma fala de um oficial nazista sobre a inferioridade e irrelevância dos ucranianos, e o discurso de um cientista americano sobre a diferença racial entre as nações mais ricas e pobres, e como eventualmente o terceiro mundo será devorado pelos contingentes eurocêntricos.
Por mais que esse choque entre primeiro e terceiro mundo já esteja presente nos projetos anteriores de Sanjinés, Sangue do Condor finalmente incorpora o espírito comunitário presente nas culturas indígenas, espelhando a aldeia de Ignácio, que investiga e pune os americanos infiltrados, ao compromisso de Sixto, em busca de alguém para doar sangue ao seu irmão. Além do paralelismo espaço e temporal entre o antes e depois do tiro que Ignácio recebeu, há também as diferentes opressões no campo e na cidade, como o falso messianismo americano trazendo más intenções, e o enfrentamento de Sixto diante à soberba e descaso que a burguesia da metrópole oferece, incapaz de sensibilizar-se com a situação de seu irmão.
Essas duas narrativas apesar de distintas, completam-se dialeticamente: enquanto o corpo político da comunidade se mobiliza juntamente para rebelar-se e culmina na tragédia de apenas um personagem, a jornada solitária de Sixto se completa em seu desprendimento à vida urbana e o regresso às suas origens, a comunidade, onde junto de seus camaradas ergue seu fuzil na esperança de uma revolução onde eles sejam os protagonistas.