Por Gabriel Papaléo
“the heavy leaves celebrates the cut and fill for the new road”
Outono, William Carlos Williams
Um navio enorme, como o de At Sea de Peter Hutton (para quem o filme é dedicado), atravessa a tela no primeiro plano para nos situar de que essa é uma história de chegadas e partidas que também fala do lastros históricos deixados para trás, do diálogo de sombras entre presente e passado, da investigação acidental de um encontro contemporâneo na floresta; um filme partindo da sensação da memória, de alguma forma. Dos sabores de casa que os viajantes em travessia podem ocasionalmente provar.
O apreço de Reichardt pelo cotidiano, sobretudo pelo ritual, é o que carrega o volume histórico em First Cow nos mínimos detalhes das interações dos variados coadjuvantes que vemos aqui. Um tempo se expressa pelo comportamento dos que o habitam, e em meio aos rústicos casebres e tendas do que era praticamente um país em formação, o interesse do protagonista Cookie é pela natureza. Sua exploração é silenciosa, a colheita dos ingredientes também, a pesca uma atividade paciente. A água que corre nos rios, as flores colhidas para decorar a casa; alguém que não se identifica com os delírios de dominação colonialista, enfim. É como se Jon Raymond e Reichardt estivessem interessados em contar a história de um habitante comum do que seria um faroeste, as elipses calculadas para acumular os métodos e cotidianos que assistimos, num tranquilo fluxo de dias singelos.
E método é importante porque é através dele que entendemos também a sensação desse presente dos anos 1820, e as personalidades de Cookie, o modesto cozinheiro apresentado colhendo flores, e de King-Lu, o estrangeiro que surge nu na floresta e é acolhido com sua voz mansa e pensamento astuto. Boa parte da narrativa é concentrada na simples passagem dos dias onde Cookie e King-Lu colhem o leite da primeira vaca do título, vão fazer os bolinhos de chuva, e vendem no dia seguinte. A medida que o tempo corre, seus sonhos de futuros são assombrados pela espera do fim antecipado pelo prólogo, e Reichardt começa e termina o filme como o Sem Teto, nem Lei de Agnès Varda – uma ilustração relacionada com outro conto de solitários em travessia que precisam se virar diante da sociedade. A âncora emocional do filme, e também a bússola moral dos personagens, é a harmonia dessa amizade entre os dois, e o como se pode sobreviver no desequilíbrio proto-capitalista que motiva a construção de um assassino pelo fato banalizante de que lhe foi negado o consumo.
O comportamento e o gestual são a chave, e a algo muito frágil pairando no ar desses eventos, na qual a tênue linha da violência só pode ser combatida por um dia a dia de parcimônia. E Cookie consegue se expressar melhor no carinho no qual trata a vaquinha quando a ordenha que com qualquer relação de brutalidade que enxerga ocasionalmente – brutalidade, por assim dizer, no trato do testemunho dela frontal na briga de bar, mas também no desconforto palpável que Reichardt administra na excelente cena do clafoutis, dando toda a hostilidade velada entre o chefe inglês e os indígenas que com ele trabalham da forma econômica da qual a diretora é absoluta.
Os hipnóticos vinte e cinco minutos finais, no coração da floresta, trazem a hostilidade e os segredos que aquela natureza então admirável guarda, e mesmo ali Cookie busca uma bela vista para admirar, na sua calada jornada. E King-Lu, homem viajado de planos futuros sem ilusões de grandiloquência, aos seus poucos bens materiais tem uma despedida diante das adversidades. O controle de ritmo, qualidade de Reichardt em todos os filmes que montou, a partir de Antiga Alegria, aqui apresenta a modulação dramática característica, mas prezando em pontuar as distinções sensoriais entre a encenação dos tempos calmos dos dois primeiros atos e o abandono ameaçador do terceiro, o tipo de tensão que a diretora trabalhara apenas em Movimentos Noturnos – e enquanto lá esse senso de perigo revelava uma distância gradativa da câmera para com os personagens, aqui essa ameaça nos aproxima de Cookie e King-Lu, cada vez mais abandonados às trevas, buscando um ao outro como fantasmas. O Oregon dos anos 1820 guarda maravilhas e segredos, e os dois se confundem em desafios diversos na câmera de Reichardt.
Quando o chefe do vilarejo diz que o bolinho de chuva de Cookie “tem sabor de Londres”, fica evidente que nenhum dos personagens de First Cow está onde nasceu, nem mesmo os indígenas que atravessam a tela, já que a dinâmica de sua terra foi radicalmente alterada pela chegada dos estrangeiros à procura do poder. À travessia são todos relegados, nesse segundo faroeste revisionista de Reichardt, depois de O Atalho. Como a Emily de lá sabia que uma vez perdida a identificação de lar precisava tomar as rédeas do próprio destino e dos que estavam sob sua responsabilidade, resta aos gentis padeiros daqui se agarrarem ao seu companheirismo em meio à surreal desproporção das vinganças dos poderosos.