Entrevista com Hernani Heffner: Parte 3 – Fim de um século, início de outro

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Por Fabian Cantieri[1] e Thiago Brito[2]

Fabian: Você fala desse poder da obra de arte. E eu queria voltar a isso. Mas primeiro eu acho impressionante a nossa capacidade de perder a capacidade de se impressionar. A gente tá numa pandemia. Os EUA está efervescente com os protestos decorrentes da morte do George Floyd. O Brasil foi o primeiro país no mundo a tirar a COVID-19 da pauta central, com a saída do Moro, com as questões políticas todas. E aí, tentando atravessar esse momento muito específico com o nosso foco: o lugar da arte e o cinema. Como você enxerga o futuro do cinema a partir de agora? As salas de cinema estão ameaçando não reabrir, já se discute muito essa ideia de que o streaming veio pra ficar e que as pessoas vão se acostumar com essa outra experiência, mas tem esse lugar, onde  a Cinemateca talvez seja esse símbolo maior de ver um filme no seu formato original numa sala escura. Como você vê isso? Começou o século XXI?

Hernani: Bom, pra mim, começou agora. Todos os fundamentos do processo entre o fim da União Soviética, queda do muro de Berlim, etc., ou seja, a consolidação da globalização e de uma certa economia pós-industrial, massivamente ligada ao deslocamento e ao produto físico ela se desfez. Não totalmente, claro, essas coisas não são estanques, mas ela começou a se desfazer a partir da crise de 2008 e agora por completo. Percebe-se que certos arranjos econômicos, sociais, tecnológicos, políticos podem se dar de outra forma.

A pandemia é sobretudo um momento muito mais simbólico do que concreto – não são 2 ou 3 meses que vão sacramentar o processo – de que pode haver outro arranjo de forças, de exploração econômica, outro arranjo político. Ao mesmo tempo que você percebe essa possibilidade de mudança, você percebe que as estruturas anteriores podem se manter se você souber conter essas forças, se você souber absorver, cooptar essas forças. Dar um outro sentido ou simplesmente associá-las ao processo histórico mais amplo, que a gente sabe que é o processo capitalista industrial.

O momento da pandemia cria a dimensão de que o processo anterior tá na bica de se encerrar e provavelmente vai e cria oportunidades. E aí, por mais trágico que isso seja, dentro de uma economia capitalista, aquele empreendedor, empresário, financista, investidor que é esperto o suficiente, ele saca quais são os desdobramentos e vai investir nisso, eventualmente criando um mundo novo.

Vou te dar um exemplo que é histórico: durante a pandemia da gripe espanhola, que foi uma pandemia, inclusive, maior que a atual – estima-se que 50 milhões de pessoas morreram no mundo – houve algumas consequências imediatas e vou dar dois exemplos, um tem a ver com cinema, outro não. A que tem a ver com o cinema é o fato de que aquilo que a gente conhece hoje monoliticamente como Hollywood, em 1918 não estava nem um pouco consolidado, longe disso. Seja porque a maior parte desses filmes feitos nos EUA ainda era feito em NY e não na Califórnia, em Los Angeles, seja porque a maior parte do circuito de salas de cinema dos EUA era pulverizado, tinha milhares de proprietários, não existiam grandes circuitos no sentido que a gente conhece, sobretudo, a partir do final dos anos 1920.

Durante a pandemia, os cinemas fecharam em várias partes do mundo, inclusive no Rio de Janeiro, mas sobretudo no EUA e fecharam dentro de um conflito legal muito grande – não queriam fechar, foram obrigados a fechar pelas autoridades. E óbvio que passou 1, 2, 3 meses, naquela época o capital de giro era muito pequeno, era uma atividade ainda essencialmente popular, você não durava muito tempo com o seu negócio se você não tivesse ele, de fato, funcionando. Logo começou a quebradeira, muitas salas fecharam e aí o Adolph Zukor, que é um daqueles que moldaram a Hollywood tal como conhecemos, daqueles que instituíram as chamadas majors, ele era responsável pela Paramount… até aquele momento, esses embriões dos grandes estúdios, Universal, Warner, Paramount, etc. são basicamente unidades produtoras, não estão ainda totalmente verticalizadas ou na prática, muito longe disso.

Ele cria a grande oportunidade em meio a gripe espanhola: comprar, literalmente, centenas de cinemas que estavam quebrados – os proprietários tinha aberto falência – e unificar isso num grande circuito próprio de circulação de suas mercadorias. É aí que nasce a Hollywood que hoje a gente chama de clássica. E é um fenômeno estritamente ligado a quebradeira propiciada pela gripe espanhola. Isso é história, não uma mera especulação ou hipótese. Você pode perguntar: vai acontecer o mesmo hoje? Não sei. Eu diria que não…

Fabian: O oligopólio hoje é maduro e cresceu…

Hernani: Isso, as famosas cinco, que depois viraram sete que depois ganharam um apêndice da Disney que é a oitava e é a maior e está se expandindo pros streaming com o Netflix da vida [ele fala aqui do “Big Six” – Paramount, Warner, Sony, Universal, Fox, Disney – além das duas de streaming Netflix e Amazon]. E preste atenção: a Netflix está fazendo o que hoje nos EUA nesse momento? Comprando salas de exibição. Acabou de comprar o famoso Egyptian Theatre em Hollywood, que é uma das salas icônicas da era clássica, e comprou outras salas ao redor dos EUA. Não num circuito tão grande quanto lá quando a Paramount comprou em 1919, mas ela tá comprando salas agora que faliram pra ter um espaço de qualificação, de marketing do seu produto. Na percepção de uma empresa como a Netflix não dá pra apostar 100% no streaming. Então as salas vão continuar.

Como existiam anteriormente? Provavelmente não. Seja porque espaços como shoppings vão se tornar inviáveis economicamente, seja porque parte do público, de fato, vai migrar pra casa e pro celular, seja porque você vai redimensionar simbolicamente tudo isso. Eu acho que a questão que surge agora não é tanto qual o grau que o arranjo atual vai ser afetado mas como ele vai ser modificado. Isso implica, inclusive, a ideia que o Walter Benjamin tinha percebido muito bem, que é a ideia de que o cinema é antes de tudo uma arte de massa. Apresentada a milhões de pessoas, fisicamente falando, ao redor do mundo, no mesmo momento, eventualmente no mesmo dia. Isso já vinha se perdendo, não é novo, essa escala diminui estratosfericamente nos últimos 50 anos, mas talvez tenha agora, de fato, sua pá de cal.

O cinema vai desaparecer? Não, isso é bobagem, não tem o menor sentido. Negócios vão ser redimensionados, fechados, comprados? Vão. Isso faz parte do processo. Mas sobretudo, a ideia de cinema vai mudar. E eu acho que taí o grande desafio. A questão é: se o século XX de fato acabou qual é a natureza do século XXI? Se a arte do século XX se esgotou é preciso desenvolver outras formas de arte, com outros arranjos tecnológicos, inclusive, pra esse novo momento.

Então como é que você vai lidar com o desafio? Como é que você vai se encaixar no mundo que surgir adiante? E a gente não pode ser ingênuo né? Os artistas na Hollywood tinham enorme dificuldade de lidar com aquela engrenagem. Poucos, inclusive, conseguiram fazer valer suas prerrogativas artísticas sobre a máquina econômica que aquilo representava. As coisas, os conflitos, as explorações não vão desaparecer, mas você ainda precisa, no sentido humanista do processo, defender a liberdade, a tolerância e todos os valores que se acreditam positivos pra convivência humana, você precisa, de alguma maneira, estar atento ao novo e o novo não é apenas o instrumento novo, o novo é uma vida nova. Você precisa criar novas formas de sensibilidades e sociabilidade.

Precisa, inclusive, talvez recuperar algumas das antigas. Essa dimensão massiva é a mais importante. Boa parte do que houve de positivo ao longo do século XX veio dessa dimensão massiva. Não se pode transformar a vida numa vida de gabinete ou de espaço em frente a uma câmara de rede social, como a gente tá aqui. Isso pra mim é um equívoco. A sobrevivência do cinema aqui no Brasil de forma mais imediata significa, de um lado que a gente mais uma vez vai pegar o nosso dinheiro pra sustentar o prejuízo externo, seja através da dívida externa, seja através de um aporte de emergência pras salas de exibição que são basicamente estrangeiras no Brasil. Quer dizer, a população mal e mal teve R$600 pra sobreviver minimamente durante a pandemia, mas certamente as salas de exibição dos Cinemarks da vida, que apoiou o Jair Bolsonaro, financiou sua campanha, vão receber milhões. Isso é atravessado pelo gesto e pelo direito das pessoas de consumir cinema, de uma maneira ou de outra…

Fabian: O Banco Central já. 

Hernani: É, exatamente. Eu acho que tem uma oportunidade aí, sobretudo pra um cinema que a gente genericamente chama de independente brasileiro, de criar circuitos próprios, de expandir suas formas de contato com a população brasileira, de chegar a um número efetivamente maior de pessoas. A gente menosprezou muito no início a força de instrumentos como You Tube, redes sociais, etc. e se a gente souber explorar isso numa escala mais ampla, mesmo um cinema do passado de repente tá passando aí pra duzentas, quinhentas mil, um milhão de pessoas ao longo de dez anos.

Fabian: Isso implica um pouco abandonar uma certa comodidade do circuito de festivais, né?

Hernani: Sim, totalmente. O foco não pode ser só ganhar dinheiro ou ganhar fama ou ganhar prestígio. O foco primordial tem que ser o contato com as pessoas. Não se acomodar em fazer o seu filme circular pro maior número de pessoas possível. E da melhor forma possível, porque muitas vezes o filme brasileiro circula com uma qualidade técnica pra lá de sofrível, que às vezes, inclusive, joga contra a natureza estética da própria obra. Então é preciso valorizar as pessoas, o momento e inclusive esses instrumentos de circulação e construir uma outra forma de fazer o filme brasileiro existir dentro do Brasil.

Fabian: Por outro lado, sendo advogado do diabo dos dois lados, isso implica uma dificuldade enorme de sustento do artista.

Hernani: Sim, talvez a gente volte àquele momento em que Machado de Assis era funcionário do Ministério da Agricultura.

Fabian: Pois é, você tem uma profissão oficial e a segunda é fazer filmes.

Hernani: Não, ao contrário né? Você, porque quer fazer filmes precisa comer, mas não vai deixar de fazer filmes por causa disso e aí você arruma lá um jeito de comer. A gente não pensa direito: qual era o objetivo de Machado de Assis, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade? Essas pessoas eram funcionárias públicas porque queriam? Não. Eram funcionárias públicas, porque queriam ser artistas.

Eventualmente não dá de um jeito, não tem opção, vai ser do outro, vai ter uma vida muito chata por um lado, mas não vai abrir mão de fazer arte. Não vai abrir mão de pensar, se exprimir, trocar lá uma sensibilidade qualquer com os espectadores que estão por aí. Agora se você tá nisso pelo dinheiro, bom, aí eu recomendo que você vá pra Netflix, pra uma rede de televisão, vá fazer o produto tradicional, porque pelo menos você vai ter um bom salário. Se você vai fazer arte ou não já é outra questão. Então a gente não pode ter a ilusão de achar que porque no século XX os artistas ganharam muito bem, isso foi sempre assim. No século XIX a maior parte dos artistas viveu miseravelmente, quase não ganhou um centavo ao longo da vida.

Fabian: É que também com a “democratização dos meios” há de se pensar na desigualdade desses corres. Lincoln Péricles fala muito sobre isso, por exemplo. Hoje em dia existe uma pluralidade muito maior desse campo artístico não é só elite fazendo ou quem teve uma educação formal completae aí o funcionalismo público do Machado, por ex., envolve um tempo de estudo pra ingressar ali nesse emprego estável que nem sempre é o tempo de quem tá na correria. Acabaria rolando um corre triplo: o tempo de se virar pra sobreviver, o tempo de estudo pra alcançar alguma estabilidade e o tempo de fazer os filmes.

Hernani: Sim… o que eu acho que é importante perceber é a diferença que vai existir na União Europeia e, por exemplo, no Brasil em relação ao socorro do mundo que existia até a pandemia. Por exemplo, o socorro das indústrias cinematográficas nacionais europeias que não podem ser sacrificadas de uma hora pra outra, sejam em termos dos empregos ou dos produtos ou até da geração de renda para essas economias nacionais, etc. e a União Europeia armou um plano que ela vai investir, sei lá, um trilhão de euros a fundo perdido.

Ela não vai obrigar as pessoas a retornar, o que é impossível, sobretudo a juros bancários e vai atuar em todos os níveis da sociedade, vai atuar no empresário de exibição, junto aos produtores, aos espectadores com ingresso subsidiado, vai atuar na cadeia de sustentação, laboratório, pós produção, etc. de uma forma inteligente.

No Brasil, não só não temos um plano como esse, porque o plano é dar dinheiro pros bancos e os bancos cobrarem juros extorsivos, como em relação ao mundo cinematográfico a gente vai funcionar dentro da lógica antiga, ou seja, os EUA fazem pressão por conta de seus negócios no mercado brasileiro, um mercado dominado por eles há mais de um século e quem vai subsidiar isso é o próprio Brasil, não vai ser a Warner que vai lá vir dos EUA pra botar um dinheiro aqui e sustentar parte da atividade. O que você tem de novo nesse sentido foi a Netflix que criou um fundo em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, e distribuiu uma renda mínima pros artistas. E com isso ela teve um gesto de boa vontade, de marketing e, eventualmente, um canal aberto com a própria atividade como um todo. Se ela for reforçar a sua presença via streaming junto ao público brasileiro, ela fez a jogada de marketing perfeita.

Fabian: É um pouco do que já vinha acontecendo antes né? Enquanto a Ancine vem tendo os recursos congelados, a Netflix vem sendo considerada como salvação por uma parcela da comunidade do cinema com uma vasta oferta de empregos. Tá cheio de roteirista feliz com tantas portas se abrindo, todo um novo manancial de oportunidades, mas em termos artísticos (e não só), é de novo um desenho colonial da coisa enquanto antes tínhamos os meios de produção, agora trabalhamos pra eles, para uma empresa estrangeira.

Hernani: Sim. E a gente não pode esquecer com toda essa questão da Ancine que um dos filhos do Bolsonaro numa live elogiou a Netflix. O tipo de cinema que deveríamos ter não era Bruna Surfistinha, mas Netflix. Não podemos esquecer o quanto na composição do conselho superior de cinema do governo Temer, no comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual a Netflix foi cogitada pra ocupar uma cadeira. Então esse é um processo mais amplo, que já vem de algum tempo, que a pandemia pode ter acelerado e que está aí no jogo de xadrez há muito tempo, esse tabuleiro é muito difícil pros brasileiros porque quem conduz os dois lados não somos nós e aí fica muito difícil a gente ter qualquer tipo de atuação mais sensível, coordenada, prática, mais útil e decisiva porque o governo brasileiro, de uma maneira geral, não apoia o audiovisual brasileiro salvo em raros momentos, em raras exceções e quase sempre joga contra utilizando mecanismo de Estado, ou seja, a legislação pra favorecer essas empresas estrangeiras dentro do próprio país, então a gente tem essa situação e ela é muito diferente do resto do mundo. Você pode mudar mais cedo ou mais tarde, mais amplamente ou menos, mais forte ou menos diante da pandemia. A Europa escolheu o caminho da moderação – “vamos sustentar o que já existia, pode ser que venha a mudar, mas também a gente não vai destruir de uma vez só”.

Nos EUA, a quebradeira foi geral, Trump não ajudou e a Netflix, a Amazon, um monte de empresas novas ligadas ao mundo digital tá comprando o velho mundo. Tão comprando por prestígio, simbolicamente, estabelecendo uma jogada de marketing que eles tiveram preocupação em não destruir, mas na verdade foram acentuar o que era novo. Então a escolha de como você vai fazer isso distingue as respostas dentro da pandemia, seja a resposta brasileira, americana, da União Europeia, seja a da Austrália.

É uma corrida sempre né? Você tem diante de si o novo ordenamento do capitalismo. Como você vai se encaixar ou sobreviver dentro dele? Se você está contente em ser ainda e mais uma vez aquele país que tem o papel de produtor de matérias primas agrícolas – vai ficar vendendo soja pro mundo inteiro – é uma opção, claro, mas no meu olhar, é uma opção muito equivocada, muito antiga, muito perversa porque vai significar miséria, aprofundamento das desigualdades, uma dificuldade, inclusive, de você trazer uma expressão como o audiovisual pra todo o país. Se houve algum benefício durante os governos do PT foi a extrema descentralização da produção, a aposta numa geração mais nova, mais independente e radical, foi quando todos os Estados começaram a ter produção, foi a oportunidade mesma de você ter essa distribuição mais bem distribuída pelo país, não concentrada, por exemplo, em Rio e São Paulo. Esses benefícios podem vir a se perder muito rapidamente, muito brevemente, na medida que, por exemplo, a Netflix que já anunciou querer fazer coisas parecidas com as novelas da Globo, venha a adotar o velho padrão de uma produção audiovisual centrado no Rio e São Paulo e que conhece, despreza e ignora completamente o resto da expressão sócio-cultural brasileira. É um grande retrocesso no nosso horizonte.

Por outro lado, eu sei que é difícil ser um Humberto Mauro, um Ary Severo. É difícil ser um cineasta num país onde você não tem nenhuma estrutura pra te sustentar. Aqueles velhos pioneiros faziam cinema de teimosos, não faziam porque iam ganhar dinheiro, ficar ricos ou famosos. Os filmes do ciclo de Recife passaram num cinema de segunda linha e pra um público bastante restrito nos anos 1920. Isso não impediu eles de fazerem, de acharem que era importante e tentar fazer de alguma maneira. Hoje isso é memória, faz parte da história do cinema brasileiro e é isso, cada momento histórico tem suas injunções, suas questões, suas possibilidades.

O que eu acho que existe pra essa geração que tá no Brasil, uma geração muito grande, na verdade não é uma, mas são várias – tem cineasta de 20 a 80 anos – é a possibilidade de você manter um rolo de produção, ainda que não com o dinheiro e os meios que existiam. Mas a expressão audiovisual é isso, ela pode se fazer de N-formas, então o desafio que você tem é o de criar algo de significativo. Se o horizonte for esse, o sombrio, o desafio tá aí. Se for possível lutar pela manutenção por todos os mecanismos anteriores e até aperfeiçoá-los no sentido dele ser mais democrático, menos concentracionista, melhor ainda. Eu acho que não se deve desistir de nada, mas também se deve ter consciência do que o momento histórico está trazendo.

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Thiago:  Retomando algo que você falou, sobre coisas que não fizemos em 2010, 11, 12… 15. Quais são as coisas que não fizemos que atualmente é necessário lembrar e colocar no horizonte?

Hernani: A coisa mais importante que não fizemos nesse período todo foi democratizar o acesso ao Fundo Setorial do Audiovisual. Eu lembro da Folha de São Paulo ter feito um gráfico dos recursos do fundo ao longo de dez anos, e 90% estava concentrado em dez empresas. Isso não é democrático. Muito pelo contrário, isso é um problema sério e que, inclusive, impediu o cinema brasileiro de ter uma repercussão maior junto a sociedade brasileira.

A segunda coisa é que o fundo não era um fundo, eram vários fundos. Era um fundo de distribuição, de exibição e era um fundo de preservação. Por exemplo: ter salas dedicadas e ter mecanismos de distribuição dedicadas ao cinema brasileiro. Nunca houve aporte maior sobre isso e em relação a preservação nunca houve aporte financeiro, ponto.

Dizem sempre que o fundo tem um bilhão de reais ou 800 milhões ou 1.2 bilhão de reais. Dá 5% disso pra preservação e já resolveu o problema dela por décadas. A gente lida com uma demanda, cara, mas não nessa escala. Imagina se a preservação brasileira tivesse 100 milhões de reais por ano. Acho que faltou implementar mecanismos e, na verdade, essa implementação sempre dependeu de falta de decisão política, de você ter uma outra configuração pro cinema feito no Brasil, de você ter uma outra estrutura pra esse cinema e aí, sendo muito franco, não se trata de cantar no quintal alheio – se as empresas estrangeiras querem ter suas próprias estruturas, nada contra, vai lá – mas o dinheiro dos brasileiros tem que ser investido na dimensão brasileira.

Não é nem questão de justiça, é uma questão natural. O dinheiro é da população brasileira. Se você quer realmente ter um campo audiovisual mais equilibrado e produtivo, mais atento às dimensões de passado, presente e futuro, você tem que investir em arquivos de filme, em pequenas e médias empresas, em estruturas de pós-produção, em informação e o dinheiro é suficiente pra tudo isso. Porque se você tá concentrando 90% dos recursos em dez empresas, você tá fazendo alguma coisa errada.

Então não houve condições políticas pra mudar esse desenho. Ele acabou sendo questionado de uma forma absurda pelo atual governo, mas o que aconteceu na prática é que tudo paralisou, o FSA está paralisado há dois anos, e você tem um desafio a frente que é o da pulverização e da acumulação. É preciso entender que não se ganha mais dinheiro lançando filme na semana X e sete dias depois você tem 90% da renda daquele produto. Hoje, você pode ter o produto X e ele render durante 10, 15, 20 anos. Sobretudo se ele é mantido à disposição nas prateleiras, igual a um livro nas livrarias. Tem livro na décima quinta, trigésima edição e por que? É esse tipo de negócio que, na verdade, o digital e sobretudo essa coisa do streaming criou. Você tem agora um outro tipo de relação econômico com seu público consumidor e agora ele se distribui por várias gerações, ele não se volta apenas e somente pra um momento imediato que você vai faturar muito. Esse é um negócio de quem precisa botar 100 bilhões num filme e recuperar 500 em uma semana porque senão vai ter que pagar juros bancários. Porque que a gente tem que reproduzir esse modelo de economia audiovisual? É um modelo pra nós completamente inadequado, se é que ele é adequado pros EUA. Não há capacidade de gerar outro modelos? Temos que nos submeter a esse único modelo e nesse sentido sermos colocados de fora dessa economia? Eu me pergunto porque que a gente insiste em ser tão tacanho, burro, sem capacidade de intervir nesse processo.

[1] Fabian Cantieri é crítico, diretor, roteirista, fotógrafo e curador de cinema.

[2] Thiago Brito é roteirista e diretor audiovisual.

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