Pode até ser que isto seja um grito

Por Lucas Saturnino

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Contes de juillet (Guillaume Brac, 2017)

Como imaginar o porvir em um país sem futuro?

(Jean-Pierre Bekolo, Les saignantes)

Lá está ela, um ser humano, mergulhando no desconhecido, e ela está bastante acordada

(Ottessa Moshfegh, Meu ano de descanso e relaxamento)

 

A linha-mestra de Ne croyez surtout pas que je hurle (Não pense que eu vou gritar, de Frank Beauvais, 2019) é um monólogo autobiográfico de Frank Beauvais — o narrador, protagonista e diretor. Em tom confessional e memorialístico — procedimentos muito caros à literatura contemporânea —, Beauvais disserta sobre cerca de 7 meses que passou isolado em uma aldeia na Alsácia, para onde havia se mudado com um ex-namorado e onde permaneceu após o término da relação.

Psicologicamente estagnado e vivendo como um ermitão, Beauvais isola-se ao extremo, reduz qualquer possibilidade de contato social ao mínimo e passa a assistir 4, 5 ou mais filmes ao dia, donde são originárias as imagens de Ne croyez…, obra inteiramente composta por excertos dos mais de 400 filmes vistos por ele no período.

Ne croyez… tem sido descrito como um filme sobre cinefilia — sua premissa não é de difícil identificação para uma plateia de cinéfilos, críticos, curadores etc. No entanto, Ne croyez… é tanto uma obra sobre cinefilia quanto sobre tecnologia e isolamento — e individualismo? —: ser capaz de baixar filmes e vê-los a sós em casa, fazer dinheiro vendendo coisas na internet — desempregado, é sua fonte de renda ocasional — e ir vivendo enquanto continua a ignorar os vizinhos e o contato social em geral.

O que fazer — quarentenado — durante uma pandemia? Ver filmes? Ver muitos filmes? Ver não apenas muitos filmes como especificamente os filmes que queres ver, tendo acesso a inesgotáveis bibliotecas — peer-to-peer, em especial — online? Tão óbvio quanto esquecível, isso só é possível com determinada tecnologia. Assim, Ne croyez… é o testemunho duma forma contemporânea de se consumir de arte e entretenimento.

Beauvais retrai-se radicalmente em resposta a — ou como sintoma de — uma sociedade doente. Para além da corrosão generalizada das relações interpessoais, há o preço dos aluguéis em Paris e os ataques terroristas que se sucedem na França entre 2015 e 2016. Longe de tudo, as notícias chegam a Beauvais — e a nós espectadores — com certo ar de irrealidade. Enquanto assistimos às imagens de uma vasta e eclética biblioteca cinematográfica, ouvimos-lhe comentar sobre o ataque terrorista em Nice.

Contudo, sem poder ver para crer, imersos na sedução estética dos excertos que nos sugerem outros filmes e outros mundos, torna-se difícil dimensionar o ataque referido — para os cinéfilos, existe um conforto, uma familiaridade, naquele fluxo visual.

Pensemos em Hanne e o Feriado Nacional, um dos médias-metragens que compõe o belo díptico Contes de juillet (Contos de Julho, de Guillaume Brac, 2017). Num dia vadio de verão — 14 de julho de 2016, Dia da Bastilha e data do ataque em Nice —, os jovens personagens bebem, flertam, divertem-se e fortalecem até que quebram laços de amizade.

No final, Hanne, bêbada, após brigar com a amiga por causa de homem, chora sozinha na cozinha do alojamento universitário. De repente, junto ao cair da noite e aos fogos do 14 de julho, surge o sorrateiro som do noticiário comunicando o ataque terrorista em Nice. Enquanto os personagens gozavam do ócio que dá sabor à vida, a morte dava as caras por aí. A qualquer momento, uma notícia poderá irromper inadvertidamente no cotidiano: um ataque terrorista, um novo vírus, um golpe de estado, uma invasão alienígena. Em 2 de agosto de 1914, a Alemanha declarou guerra à Rússia e Franz Kafka foi nadar, etc.

Diz a clássica metáfora que o cinema seria capaz de fazer o espectador viajar —transportá-lo-ia para outras realidades, outras peles. Beauvais, porém, compara filmes a curativos, ataduras. Assim são os cinéfilos calejados: entendem demais do riscado para conseguirem vê-lo inocentemente — ora guardiões, ora túmulos de ilusões. Para ele, os filmes, acumulando-se, funcionariam como analgésicos — um cine-narcótico, sedativo e aditivo, frente à nação convulsiva.

Não é uma lógica semelhante — a da saturação — que anestesia o peso das tragédias? Elas vão ocorrendo, sendo noticiadas e se acumulando. Beauvais abre o computador, vê a notícia do ataque terrorista, pondera que não conhece ninguém em Nice e vai dormir.

Ansiando por outra coisa, Beauvais põe-se a assistir antigos filmes da Alemanha Oriental e da URSS à procura de personagens que questionavam seu papel na sociedade, enquanto lutavam para construí-la. O compromisso comunitário: o que terá sido feito dele?

Em decorrência do isolamento autoimposto, ele confessa que pegou o costume de só ir ao supermercado uma vez a cada dois meses. Em 2019, isso soava como um exagero, indício irrefutável de que Beauvais não andava em seu melhor — o brasileiro, por sua vez, talvez se lembrasse do hábito, causado pela inflação, das “compras do mês”.

Cá estamos, entretanto, em 2020, espaçando as idas ao mercado… Terá Ne croyez… adquirido contornos — por que não — singelamente proféticos? O que vem e o que veio é muito pior e incerto, então permitam-me o ensejo para uma digressão cinematográfica ao ocaso de duas sociedades muito diferentes, embora originárias do mesmo lugar:

Há muitas formas de se fazer um filme em uma sociedade prestes a desaparecer, frente a um apocalipse particular iminente. Por exemplo, Veit Harlan fez Kolberg (1945) — o mesmo Harlan que viria a ser julgado por crimes contra a humanidade devido ao seu envolvimento na máquina de propaganda nazista. Kolberg, a última superprodução do Terceiro Reich, narra — manipulando os fatos segundo os ditames da propaganda — a resistência suicida da pequena cidade de Kolberg contra o exército napoleônico.

Imoral ao extremo, o objetivo de Kolberg era convencer os espectadores de que a Alemanha não deveria parar de lutar, mesmo que a guerra parecesse perdida, conclamando-os a perseverarem até morrer, cumprindo assim o desejo/impulso de morte — suicida — que está na base da ideologia nazifascista. Pois o horizonte nazifascista é a aniquilação, nem que seja a autoaniquilação, e daí também o fetiche sacrificial.

Goebbels mobilizou cerca de 187 mil soldados para atuarem como figurantes. E quis realizar a première em La Rochelle, das últimas bases sob controle alemão em uma França em processo de libertação, onde uma cópia do filme teria sido insolitamente jogada de paraquedas. Quando os soviéticos tomaram Kolberg, Goebbels omitiu essa informação do público, temendo que o potencial inspirador do filme fosse prejudicado pela realidade.

Harlan busca transformar a aniquilação da cidade resistindo ao invasor em algo belo — Kristina Söderbaum, embalada por sinos e canhões, acariciando loiros cabelos infantis, enquanto canta e chora a incineração da Heimat —, como se o sacrifício encontrasse sua razão de ser no espetáculo audiovisual do canhoneio e na representação do povo — uma massa magnética e acima de individualidades — como repositório da energia belicamente sexual da nação. A catarse resultante seria a maneira de seduzir o público a aderir a uma luta fadada à morte. A imoralidade no cinema poucas vezes terá ido tão longe.

Os cinemas mantiveram-se abertos até a rendição ou bem perto dela. Goebbels julgava-os essenciais, uma “necessária distração”, pois seria necessário que o povo tivesse onde desanuviar. Conforme os bombardeios iam destruindo o circuito exibidor, teatros e outros estabelecimentos eram transformados em cinemas. O Tauentzienpalast, a primeira sala a exibir Kolberg em Berlim, não terminaria a guerra de pé.

Depois do fim, depois de Kolberg, restam as ruínas. É nas ruínas, das ruínas, que surgirá o cinema da Alemanha Oriental: com narrativas de perda, culpa coletiva e reconstrução nacional como Die Mörder sind unter uns (Os Assassinos Estão Entre Nós, de Wolfgang Staudte, 1946). E o que começa em ruínas morais e concretas, terminará em ruínas simbólicas — retratos de uma sociedade estagnada e estagnante: a utopia fossilizada.

Andreas Voigt documentou, na linha de frente, o colapso do comunismo na Alemanha. Em Leipzig im Herbst (Leipzig no Outono, 1990), realizado em conjunto com Gerd Kroske, Voigt registra as manifestações de massa nos meses que antecederam a queda do Muro, o momento em que o povo vai abandonando o regime e a inépcia do Estado em reestabelecer um diálogo, um pacto de confiança e governança com os cidadãos.

A câmera de Voigt permaneceria em Leipzig nos anos seguintes, documentando a convulsão social subsequente ao fim do comunismo. Glaube, Liebe, Hoffnung (Fé, Amor, Esperança, 1994) é possivelmente o primeiro retrato cinematográfico da ressurgência da extrema-direita na Europa pós-1989. O filme deixa implícito um motivo até simples: a vida dessas pessoas é uma merda e por acaso alguém se importa com elas?

Antes, em Letztes Jahr Titanic (Ano Passado Titanic, 1991), Voigt acompanhara diversos moradores de Leipzig entre os dezembros de 1989 e 1990, ou seja, entre a queda do Muro de Berlim (09/11/89) e a reunificação da Alemanha (03/10/90). Letztes Jahr Titanic retrata um período composto por incerteza, desconfiança e esperança. O tempo parece simultaneamente suspenso e acelerado. Sobre imagens desamparadas — angustiadas, à deriva, esperando —, paira o fantasma do desemprego. O porvir lhes obsoletará, tirando-lhes a subsistência, ou lhes dará oportunidades para melhorar a qualidade de vida?

A jornalista Renate confessa seus sentimentos conflitantes: está alegre em ver renovado o seu horizonte de possibilidades, mas crê não ter futuro profissional ou social, sentindo medo e vontade de desistir. Renate havia colaborado com a Stasi (a polícia política) após ser estuprada e chantageada por um oficial. “Com um passado desses, não há futuro”, diz. Muitos pararam de cumprimentá-la. “Quando deveríamos ou poderíamos ter sido mais espertos lá atrás? O meu ideal de sociedade parecia realizável na Alemanha Oriental”.

A jovem gótica Isabel comprou uma arma após passar a ser constantemente assediada por grupos de extrema-direita. Tentam agredi-la, ameaçam cortar-lhe o cabelo ou queimá-lo. “De onde vem essa violência?”, Voigt pergunta. “De tudo o que aconteceu”, ela responde, “A merda toda. Por conta da reunificação […] As coisas estão ficando mais conservadoras […] Eu terei que me conformar, mudar o meu estilo […] usar roupas normais”.

— “Como você quer viver no futuro?”

— “Não sei. Não faço ideia. Eu tentarei seguir com a minha vida. É isso.”

Perto do final, um dos entrevistados observa que Voigt e sua equipe também ficarão desempregados com o fim da DEFA — o estúdio cinematográfico do regime comunista, o qual, sendo estatal, deixará de existir com o fim desse mesmo Estado — e recomenda-os procurar trabalho no lado ocidental: “Há muita oferta de emprego lá”, ele lhes diz e ri, entre um gole de cerveja e outro. Em seguida, corta para a fachada de um cinema. “Dicas de filme”, lê-se na vitrine — a recomendação é Crocodile Dundee II (John Cornell, 1988). Ao lado, outro cartaz: “Um filme só se torna uma experiência na sala de cinema”.

Um pouco como no mundo todo, a introdução da televisão na Alemanha Oriental provocou uma queda no número de espectadores dos cinemas. E fez diminuir o orçamento da indústria cinematográfica estatal, uma vez que, à nível de produção audiovisual, passou a sofrer a concorrência da televisão também estatal. A competição com a TV era dupla: do lado ocidental, torres de transmissão foram erguidas perto da fronteira, sendo possível sintonizar os canais do vizinho capitalista em quase todo o país — as duas regiões onde o sinal ocidental não pegava ganharam o apelido de “vale dos inocentes”.

Segundo Sabine Hake¹, o declínio no número de espectadores e de produções contribuiu para a crescente marginalização do cinema na vida cultural da Alemanha Oriental, o que transparecia em narrativas menos tradicionalmente politizadas, em contraste ao projeto pedagógico comunista/antifascista que deu origem à DEFA — sinalizando, ela conclui, um tácito reconhecimento de que o “cinema socialista” havia falhado. Por conseguinte, a DEFA desaparecerá porque o mundo a que servia e reportava deixará de existir.

Enquanto a câmera percorre a fachada do cinema, ouvimos a melodia de La Paloma, canção imortalizada na língua alemã por Hans Albers em Große Freiheit Nr. 7 (Grande Liberdade Nº 7, de Helmut Käutner, 1944) — realizada na fase final da guerra, uma obra-prima desesperada e alucinatória, sobre ilusões e frustrações, a instabilidade de promessas portuárias e a desolação decorrente das esperanças estilhaçadas pela liberdade dos outros.

Dentro do cinema, a câmera nos mostra um ambiente completamente destruído. No interior da sala, uma panorâmica revela apenas destroços. Corta e surge uma loja mais moderna. Na fachada, lê-se: “VIDEO–WORLD”. La Paloma ainda está a tocar. Segue-se um skinhead raspando a cabeça de outro — Voigt retrata skinheads de esquerda e de direita em seus filmes, o que causa confusão visual — e, ao som quase inaudível do hino nacional alemão porcamente executado, fogos-de-artifício explodindo colorido no céu.

Letztes Jahr Titanic se inicia com a imagem de um trem chegando na estação e se encerra com a imagem de um trem deixando essa mesma estação. No começo, sabemos que ele está a chegar em Leipzig. Ao final, porém, não conhecemos seu destino. Nesse ínterim, a Alemanha tornou-se novamente uma só. No último plano, a câmera está no mesmo lugar onde se encontrava no primeiro. O início e o fim mostram-nos um mesmo trilho em momentos distintos, cada qual com um trem percorrendo-o em direções opostas. Assim sendo, na nossa perspectiva, a dianteira converte-se na traseira do comboio. E, dessa maneira, a câmera passa a só ser capaz de filmar aquilo que deixa para trás.

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Letztes Jahr Titanic (Andreas Voigt, 1991)

¹ Hake, Sabine. German national cinema. London: Routledge, 2008.

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