Por João Pedro Faro
Entre o vampirismo como manutenção de um poder vigente e como puro hedonismo, Canto dos Ossos (2019, Jorge Polo e Petrus de Bairros) estrutura-se na variação de possibilidades do mito. O vencedor da Mostra Aurora na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes é a tentativa de emular possibilidades imagéticas de um cinema de gênero com regras próprias de execução.
Localizado tanto no litoral do Rio de Janeiro quanto no do Ceará, Canto dos Ossos e seu tamanho de tela reduzido busca um conto juvenil de horror vampírico atado ao tema do abandono. As instituições públicas em crise, totalizadas na professora-vampira que guia a narrativa, e a maresia litorânea de uma rotina marcada pelo ócio da adolescência, vivida pelo casal de amigas que acabaram de se formar, formam o mosaico de ideias prontas para serem experimentadas pela derivação.
Dos clássicos de monstro da Universal e do cinema de terror descolado oitentista, especialmente de referências como Os Garotos Perdidos (1986, Joel Schumacher), os autores integram o desejo de seus personagens pela transformação pulsante de um estado atual, independente das consequências dessa transformação. Dois rapazes se conhecem por acaso em uma noite e transam no dia seguinte, com a descoberta de que um deles é um vampiro sendo apenas a pulsação pela mudança do marasmo rotineiro que cansa em existir. Mesmo como monstros, os personagens jovens de Canto dos Ossos reconhecem a necessidade da mutação do corpo, da imagem e do espírito como essenciais à sobrevivência, são vampiros que devoram em tela seu próprio desejo de não sepultar-se ao tédio.
Outros vampiros, que surgem como a única ameaça real de uma trama que não se importa muito com o próprio desenvolvimento, estão em putrefação, definhando com seu poder dominante que sabota as possibilidades de prazer da juventude. O único momento de invenção que essa classe dominante pode viver é em sua destruição, sendo a morte do patriarca-múmia-vampiro-chefe preenchido na tela por uma gosma verde e por um incêndio controlado que fura o enquadramento.
Canto dos Ossos é dosado pelas experimentações impulsionadas por seu contexto enquanto percorre uma dicotomia estranha entre pequenas tramas inacabadas e uma intensidade de ambientações. A gratuidade de ideias, com diversos personagens protagonizando diversos conceitos, por ora gera um constante investimento na experiência do filme, mas também acaba por desvalorizar uma certa pontualidade de momentos mais congratulatórios, revestidos de maior originalidade imagética e sonora. O grupo de vampiros que protagoniza as sequências no Ceará, os melhores momentos do filme, possui um encontro de invenções que estabiliza conceitos do gênero (existe uma luta de vampiros, uma obsessão pelos signos clássicos subvertida em um ambiente próprio do longa) com interseções típicas ao jogo de juvenilidades e fluxo do filme (na interessante sequência do banho no lago). Mas sua potência parece perdida dentre outras, de menor calibre imagético e de ideias menos singulares, como a trama detetivesca de um fotógrafo e as longas incursões pela narrativa de um texto gótico. Uma mania constante a um cinema de gênero mais contido: a fixação por pequenos amuletos, de passagens antigas empurradas em qualquer canto da obra até a brevidade de objetos fora-de-lugar que parecem querer puxar a todo custo algum significado místico por si só. Por vezes, do muito surge pouco.
Inevitavelmente expressivo em concepção, Canto dos Ossos não parece querer ser um trabalho finalizado, em termos tradicionais e superficiais do termo. Porém, mesmo na incompletude, seus coitos interrompidos e seu apreço narrativo pelo mínimo oscilam entre resultados genuinamente desestabilizadores e projeções mornas do gênero derivativo. Aí está o abandono consentido, presente tanto na relação de seus personagens com o mundo quanto em seu próprio ideal de cinema. É como a promessa de uma eternidade melhor que o presente, ou sobre a confusão entre esses dois conceitos que torna instável um projeto mais concretizado de invenções.