Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (Bruno Risas, 2019)

Por João Pedro Faro

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Desde o princípio de sua imagem, o disco voador surge como interrupção de um estado de normalidade da sociedade moderna. Mesmo em uma cidade global como São Paulo, primeiro mundo do terceiro mundo, não há arquitetura mal projetada ou viaduto erguido que esteja no mesmo nível de um OVNI. Parte do que torna Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (2019) um diferencial dentro do desgaste atual do filme-rotina ou do filme-caseiro é sua relação com o objeto voador não identificado: sua presença reafirma o ordinário.

Filmado entre 2010 e 2017, de um experimento comum de registro e encenação que se complexifica ao longo da projeção, o primeiro longa de Bruno Risas coloca sua própria família como protagonista. Não há qualquer novidade na premissa de buscar (ou melhor, observar) mise-en-scène na rotina do próprio lar, nem na inserção de elementos fantasiosos em um contexto social, é a execução que cria sua personalidade. Sendo todo o processo de filmagem, seus conflitos, distâncias e erros expostos em veia aberta, com a iminência da fantasia construída no extracampo sonoro, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu sugere renegar os próprios meios. A construção de sua dramaturgia, mostrada em tempo real por Risas, transforma a suspensão de descrença em pura descrença. Ao mostrar a briga com sua mãe por errar um dos planos, a diretora de fotografia repetindo os takes sem corte e a conversa sobre o ato de filmar como parte constante do filme, cria um estranhamento através da desimportância de uma divisão entre o registro do espontâneo e do ensaiado.

Enquanto isso, vem chegando o disco voador. O som do tremor espacial é reconhecível desde a primeira vez que surge, mas parece tão comum ao espaço caseiro paulista, entrelaçado por brigas de família e marasmo do desemprego, que a comunhão entre o elemento de ficção científica e do cinema observacional tornam-se inseparáveis. Risas filma seus parentes como a típica classe média em crise, dentre idas e vindas de dinheiro ao longo dos anos e um senso de inquietação por uma falsa estabilidade, sempre à beira de desmoronar. O espaço da casa é um ambiente alienígena por si só, e aí não se encaixa metáfora qualquer, apenas um senso de alienação por parte de um grupo de pessoas que flutuam sobre a instabilidade do espaço em que habitam, tanto em termos de classe quanto de interpessoalidade.

As conversas corriqueiras são montadas por sequências paralelas e hipnóticas, quando sons intergalácticos parecem interferir no comportamento de pessoas brutalmente comuns. Ou talvez elas estejam agindo normalmente, e talvez a normalidade seja mesmo uma inconstância de gestos que variam entre o comum e o bizarro sem que possamos perceber. A não ser que tenha alguma câmera posicionada em nossa sala de estar, uma presença ao mesmo tempo consentida e invisível, que transparece a quem assiste seus registros nossa incapacidade de permanecer comum o tempo todo. Encenações ou espontaneidades? Provavelmente temos menos controle sobre isso do que imaginamos.

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu extrai uma potência quase magnética dessa ambiguidade. Dá até para dizer que o filme atinge um entretenimento muito direto na curiosidade pelo mínimo e pelo máximo, pelo mínimo em situações como uma risada estridente e esquisita no meio de um diálogo ou pelo máximo em aparições iminentes de figuras de outros planetas. Como em outros trabalhos construídos por encenações caseiras e planos, ao mesmo tempo, genuínos e calculados, esses momentos são capazes de tornar uma imagem corriqueira em uma construção até o enervante. Sendo exemplo 11×14 , de James Benning, em que um longo take de cozinha torna-se emocionante pela rápida passagem de um vulto no fundo do quadro, o filme de Risas tem total confiança no poder de ações menores transformadas em ações máximas pelo enquadramento. O contrário também acontece: situações máximas tornam-se mínimas diante de um dia a dia tão cheio de mistérios intrínsecos a sua natureza. Passar o dia inteiro esperando pelo dinheiro na conta ou pela hora do café, sem perceber as entranhezas naturais de uma rotina ensaiada. Resta aguardar por visitas interplanetárias que provem a nossa incapacidade de sair do lugar.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes.

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