Até o Fim (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020)

Por João Pedro Faro

o lodo

Com grandes momentos pontuais, os limites do atual cinema de afeto brasileiro estão expostos em Até o Fim, último trabalho da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Por mais que estejam lidando com quatro atrizes interessantes, interpretando quatro irmãs que se reúnem na ocasião da morte do pai, a condução não parece estar à altura de quem filma.

Arlete Dias, Jenny Muller, Wal Diaz e Maíra Azevedo carregam todo o peso do longa. Nesse Longa Jornada Noite Adentro baiano, as performances tomam conta de todo o espaço cênico e ditam os rumos narrativos da obra. Existe um vigor muito genuíno em cada uma das personagens, uma credibilidade quase imediata pelo nível de expressividade do grupo. Ainda que expressivas, nem sempre o texto (que acaba sendo incessante, com pouquíssimos momentos de imagens sem intrusão verbal) acompanha o nível dessa vividez. Uma contradição esquisita: ao mesmo tempo, os diretores parecem confiar totalmente em quem estão retratando mas também não deixam que os conflitos entre as personagens sejam expostos de maneiras menos óbvias. Muito do que é verbalizado já estava exposto em olhares, planos/contraplanos e tensões mais sutis. Especialmente a resolução entre duas personagens específicas, desenvolvida a partir do conflito de um abuso, é tratado com uma verborragia excessiva que desvaloriza a potência do tema e das atuações.

Essa desvalorização por verborragia é uma constante no filme. Os autores claramente expõem uma herança do melodrama mais clássico, com diversas tragédias entrelaçadas e simultâneas, mas sem um tratamento fílmico que as justifique. A câmera na mesa de bar repete diversos planos entrecortados, que vão de detalhes das mãos que não apresentam gestos reveladores até planos conjuntos que não conversam com o tom dos diálogos. Se o melodrama é construído, essencialmente, pelo tempo dedicado a rostos, olhares e contatos, Até o Fim acaba apressando demais seus ritmos visuais. Não que os diretores devam qualquer coisa ao clássico, muito pelo contrário, mas suas reinvenções nem sempre alcançam o potencial do drama. O conceito da execução contemporânea não monta com a tradição de seu texto, e esse conflito distancia o efeito de ambos.

Até o Fim, filme-irmão de diversos outros trabalhos da recente filmografia nacional, sofre de um mesmo problema de confundir educação sentimental com didatismo emocional. Um exemplo está em uma das irmãs do longa, uma mulher transexual. Por mais que seja muito gratificante finalmente ver uma personagem trans que não é interpretada por uma mulher cis, a atriz recebe um material que descomplexifica seus potenciais conflitos. Nada do que acontece com a personagem vai além do que esperamos desse tipo de retrato, entrando em uma espiral de repetições e explicações que são mais do que óbvias na atual produção nacional. Típica situação que entende “afeto” como simples representação, e não como aprofundamento, compreensão e imagem. As outras irmãs também passam por momentos similares, onde o que é dito parece ser o único veículo de aproximação entre autor e personagem. Ao cinema de afeto, faltam imagens verdadeiramente afetuosas, que não se apoiem quase unicamente em seus pressupostos.

O desfecho se aproxima de uma catarse coletiva que é genuína e comovente, onde as quatro atrizes finalmente entram em comunhão em tela. O momento musical é gratificante, um respiro de possibilidades entre quatro mulheres que não receberam toda a atenção cinematográfica que mereciam em boa parte da projeção. Mas há uma forte esperança nos momentos finais, uma expectativa por futuros imagéticos e sonoros mais condizentes com a grandeza de seus temas e pessoas.

Visto na 23a Mostra de Cinema de Tiradentes

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