Por Gabriel Papaléo
Em dado momento de A Rosa Azul de Novalis, o protagonista Marcelo diz que o poeta Novalis tinha como grande objetivo de vida achar a tal rosa azul, que era uma busca impossível mas não por isso menos incessante. Para quem entra na projeção se perguntando o porquê do título o filme trata logo de explicá-lo, e ao longo de 71 minutos também se concentra em tentar achar o que move o protagonista, para descobrir a rosa azul, a Rosebud de Marcelo. Sabemos ali que é um homem que gosta de interpretar as próprias palavras, de oferecer uma leitura direta sobre os objetos que mais o interessam: as suas falas. A performance é central aqui, no contexto de que a performance parece central em qualquer filme brasileiro que se propõe observacional nessa década. Como então se oferece algo desse registro da performance?
As imagens que abrem o filme meio que o resumem: um close de um cu piscando, que então revela o corpo contorcido de Marcelo lendo um livro. É a descrição do que se diz banal, um cu, em contraste com algo supostamente não banal, a literatura ali declamada. O teor “revolucionário” do corpo e da existência, e todos os reducionismos que vêm com isso. E Marcelo, um homem com complexidades, as quais raramente acessamos além da capa da referência e da domesticação do corpo.
No encadeamento de cenas, entre entrevistas e observações cotidianas, o interessante narcisismo do personagem perante a imagem que performa fica latente. Esse é bem mais interessante quando mediado pela fala dele mesmo do que quando Vinagre e Carneiro tentam ensaiar uma encenação mais marcada, como o enterro do irmão. A estrutura do filme já abraça esse conceito de que os traumas se reconfiguram em fetiches, é algo afirmado verbalmente pelo protagonista, mas existe uma polidez na encenação que passa longe do sentimento evocado pela fala de Marcelo. É uma encenação marcada que se configura kitsch, exagerada, mas como se sentisse acima do exagero, quase cínica diante daquela formação estética que finge abraçar.
A relação de fetiche com os traumas, exposta especialmente nas cenas mais estilizadas (como a transa simbólica com o carro), coloca a capa de estereótipo homossexual a Marcelo, algo que ele mesmo abraça: quando diz que algum familiar o colocou em algum clichê gay, ele faz questão de abraçar esse clichê, como uma forma de afronte. Na cena em que fala que gostaria de enviar uma sextape para o pai, fica claro a relação traumática que Marcelo tem com sua infância, com sua família, com seu irmão. A oralidade desses contos, mesmo que registrados numa câmera na mão evasiva que geralmente ignora a imagem, cria um panorama emocional e físico do protagonista que é perspicaz muito pela disposição de Marcelo em interpretar a própria imagem que emana o tempo inteiro.
Essa hiperinterpretação de Marcelo por si mesmo fecha as leituras ao filme com recorrência, sempre didático demais no trato do personagem, mas ainda passa suas complexidades com mais afinco que a encenação de Vinagre e Carneiro. As perguntas diretas demais dos diretores acabam por tentar colocar o pensamento de Marcelo em categorias que ele mesmo recusa; quando sugere que ele poderia fazer algo com seu conhecimento acadêmico pouco depois do mesmo afirmar que tudo o que importa é inútil, e não queria seu conhecimento instrumentalizado. E ao longo do filme é o que mais vemos acontecer. Se esse choque causasse alguma fricção criativa entre entrevistador e entrevistado, poderia gerar debate, alguma relação dialética que sangrasse no filme, mas não parece existir um interesse além da superfície, do que Marcelo parece representar para Vinagre com suas referências plásticas e estéticas a Bataille e Hilda Hirst.
Todo a glamurização dessas referências combinadas com as tentativas de choque tão domesticadas limam a complexidade do personagem. Na última cena, com Marcelo com um plug na bunda virada para o espectador, a câmera faz literalmente o movimento de um pau tentando entrar ali, e errando o caminho (fico me perguntando até quando um pau simulando um poder fálico vai soar transgressor para alguém). Até que consegue, e o filme se encerra com a contemplação do vazio dentro do orifício que vimos no início. Parece que o choque basta, parece que o banal basta, a hiperinterpretação diegética de um corpo que não parece feliz em ser reduzido com tal digressão, transformado num confronto inexistente através da violência imagética que também inexiste, a serviço da domesticação que chocaria apenas a família tradicional brasileira que não verá jamais esse filme. Caso se assumisse como a vaidade que é, talvez chegasse a provocar alguma coisa. Do jeito que chega, me passa batido.