SUSPIRIA (Luca Guadagino, 2018)

Terrorismo Matriarcal

Por João Pedro Faro

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Madame Leblanc (Tilda Swinton) explica para Susie (Dakota Johnson): “Você confunde fraqueza física com preferência artística”. Em uma premissa cínica como a de um remake de Suspiria (1977), seria fácil demais misturar essas duas coisas, ou talvez tentar fazer com que uma justificasse a outra. A verdade é que Guadagino, por mais que não se coloque como um autor-maestro, por mais que seja quase invisível enquanto indivíduo artístico, compreende que não existe Argento para os anos 10. Compreende que a Jessica Harper enfrentando um bando de holofotes avermelhados, cenários fantasiosos e cantigas infernais que surgem das profundezas do inferno em pouco mais de 90 minutos não é algo possível de ser refilmado. Se aquele cinema é grandioso e eterno por pertencer a certos modos de produção e certas limitações artesanais que explodem como recursos inventivos, resta a Guadagino, em 2018, a seguinte preferência artística: Tratar cada corte como uma fratura, repensar toda uma ideia vinda dos porões italianos setentistas como ferramentas para os próprios interesses contemporâneos. Uma decisão, no mínimo, louvável.

Tudo começa em potências descentralizadas. A companhia de dança dominada por bruxas existe muito mais como catalizadora de um jogo ambíguo de dominações do que como força central do poder tenebroso. Susie Bannon ingressa nesse espaço como uma dançarina de suspeita inocência, cercada por uma Berlim efervescentemente caótica, de trocas de olhares tensos com Madame Leblanc e de diversas tramas políticas de espionagem e terrorismo que nunca parece compreender. É nisso que Suspiria (2018) estabelece sua fantasia, são tantas forças atuantes em cenários tão próximos que todo o enigma é simplesmente sobre quem está por cima dessa busca por domínio. Forças guerrilheiras que atuam contra soberanias diabólicas estão de alguma forma interligadas a performances íntimas e ritualísticas de feiticeiras seculares, um psicólogo em sua jornada detetivesca pelo oculto parece ser cada vez mais engolida por forças do oculto muito além da psicanálise, amores antigos desaparecem tanto por uma memória que custa em tentar recordá-los quanto por fronteiras de um pós-guerra impiedoso… Suspiria é realmente um filme ocupado. Mas o processo de overdose de contextos, pistas, olhares por portas entreabertas e personagens que nunca parecem sair de tela é justamente parte da construção para a busca da resposta inicial: Quem tem o poder de dominar todos esses outros poderes?

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Susie Bannon vai aprendendo a cada dança que o primeiro passo para a dominação total é a dominação de si mesma. Parece brega colocar a dança como símbolo de um processo de domínio do próprio indivíduo, e provavelmente é, mas Suspiria usa desse princípio para elevar Susie por sua jornada de sacrifício pelo combate aos sistemas dominantes. A principal lateralidade Argentiana que Guadagino retoma como força motriz de um filme sobre resistências: a emancipação. O matricídio como tomada de poder da mais forte em uma utopia matriarcal, um universo tão envolto em conflitos e embates externos que acaba por focar nos desligamentos e golpes internos dos grupos de resistência. Lá pela metade entendemos que aquele grupo de bruxas resistiu ao nazifascismo na união iônica de poder, não em um embate direto como organizações armadas, mas pela simples sobrevivência. O terrorismo matriarcal parece simplesmente ser sobre sua própria existência, esse conjunto de poder manter-se vivo já é o bastante para ser um centro de destruição do fascismo.

As trocas com a Madame Leblanc se tornam o mais essencial pois fortalecem Susie contra qualquer outro poder, inclusive esses poderes que atuam internamente (“contra qualquer ação contrarrevolucionária” se torna “morte a qualquer outra mãe”). Como o comando do grupo, da bruxa secular Helena Markos, já é ultrapassado para novas urgências dos novos tempos. Que respeitem a tradição, mas que saibam que parte dessa tradição é justamente a subversão. E essa acaba sendo a jornada central de Susie: perceber que cabe a ela poder manter aquele universo vivo, que os comandos anteriores daquele grupo de bruxas estão perdidos em ideologismos (como uma bruxa explica, um grupo polarizado entre as “Markos” e as “Blanc”). A única resistência duradoura envolve a quebra de qualquer partidarismo autocentrado, envolve a celebração de como essa força de resistência foi construída e sua manutenção através de martírios. Toda a sequência final antes do epílogo é entorno disso, de Susie percebendo sua importância e, literalmente, explodindo a contrarrevolução. Finalmente sabemos quem era o poder dominante construído de forma tão ambígua.

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Suspiria parte de uma hiperestilização que tem muito mais a ver com tendências de cineastas como Nicholas Roeg do que com Argento. Mais claramente, Inferno de Sangue em Veneza, de 73 (o tempo deslocado, o terror dos becos estreitos, a ameaça caquética misteriosa) mas também o esquecidíssimo Bad Timing, de 80 (os relacionamentos destroçados pelos contextos externos, os olhares trocados por instantes, cidades filmadas de um jeito que sempre parecem querer fazer com que você se perca). As imagens são constantemente recortadas de forma que o efeito tenebroso vem muito mais das impressões deixadas por suas transições do que pela entrega individual de cada uma dessas imagens. É um processo quase de apunhalada, do terror que brutaliza a rapidez dos movimentos e se alia aos tais corpos em iminência de um perigo misterioso. Corpos em constante movimento, não só pela dança, pouco mais óbvia, mas também pelo desespero desses espaços que parecem contrair-se cada vez mais até que revelem todos os seus segredos (como a personagem da Mia Goth descobrindo aonde estava a personagem da Chloe Moretz, retraída e putrefata entre cantos de um mundo subterrâneo). Surpreendentemente é um filme que renega uma estética pomposa ou até qualquer estética, não deixa com que imagens mais visualmente expressivas durem tempo o bastante para que tornem-se apreciáveis. Afinal, está trilhando um caminho contra essas possíveis aceitações, ele busca um ideal paranoico de assimilação imagética onde o objetivo é que toda sequência se complemente do jeito mais deslocado possível.

Parece até mais certeiro comparar o filme do Guadagino com Inferno (1980) do que com o Suspiria original, um outro filme que constantemente cria um terror de planos-detalhe, de enigmas de casa mal assombrada e de investigações mal resolvidas pela falta de um antagonismo claro. Em uma obra centrada em subtextos terroristas e conflitos de guerrilha, não poderia ser mais claro como Guadagino se interessa bem mais sobre essa energia caótica de horrores paralelos.

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A conclusão do novo Suspiria é de um trabalho muito mais emergente do que o projeto poderia parecer. Mesmo dentre o cinismo de qualquer remake, é inegável que todo um ideal original é produzido e de que ele se permite toda a loucura e toda a gritaria de suas temáticas. É esquizofrênico, quase convulsivo, mas nunca desfocado do que realmente importa para seu próprio microcosmo de bruxarias, danças, golpes e paranoias. Reimagina todo um ideal de poderes utópicos e como fazem falta em um momento onde resistências parecem tão dóceis e tão impotentes. É contra tudo que não suje as mãos, que não se frature para atingir causas muito maiores. Sobra apenas um suspiro entre um corte e outro.

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