Por João Pedro Faro
O cinema brasileiro é, historicamente, um cinema de chavões, sendo dos mais recorrentes os tais “filmes sobre o povo”. Eles percorrem desde as chanchadas até a pós-retomada, o que também torna histórico que ser “sobre o povo” quase nunca significa ser verdadeiramente popular. Não apenas o popular no sentido de cinemão de shopping, de sala lotada e de ator global, mas na representação fiel desse tal povo como uma existência humana concretizada, complexa, rica. Felizmente, esse popular pode existir graças à certos raros e ocasionais brilhantismos. Exemplo: Jards Macalé, na abertura de O amuleto de Ogum (1974), cercado de três malandros armados e confiando em sua própria odisseia oral para poder sobreviver. Junto com ele, um Nelson Pereira dos Santos cansado dos cinemanovismos, revendo seu próprio significado enquanto cineasta e buscando novas identificações com o popular, deixando seu papel de autor o menos intrusivo possível para elevar em tela o que dificilmente havia sido elevado anteriormente e, nesse processo, criando um dos mais essenciais trabalhos da filmografia nacional. No processo de experimentação em tomar certa rigidez como princípio, Amuleto encontra a liberdade possibilitadora que Nelson Pereira desejava.
Todo o projeto de O Amuleto de Ogum converge para que seu ponto de partida em conseguir lidar com a cultura do candomblé e com as crenças de raiz popular seja atingido. A lenda cantada do jovem nordestino Gabriel (Ney Santanna) protegido por um amuleto que o torna o criminoso perfeito, de corpo fechado, inatingível, consegue tomar e compreender cinematograficamente complexidades sociais e religiosas justamente por se ater a um universo muito próprio e reduzido. A escolha de Nelson Pereira de fazer um filme de gênero assumido, um gângster clássico todo completo em sua estrutura, permite uma abertura por caminhos antes inimagináveis tanto no cinema de gênero quanto no cinema nacional: os arquétipos do tipo servem muito bem às novas contextualizações umbandísticas e as sobras formais do Cinema Novo se ajustam às particularidades narrativas da obra. Através dessas misturas, vai surgindo uma personalidade fílmica que de fato renova toda a forma de enquadrar religiões de matriz africana no cinema brasileiro. Entre o que havia sido tomado como “realismo”, os exageros inevitáveis do filme de crime e as transições etéreas coloridas do tropicalismo, Amuleto de Ogum consegue firmar a natureza mística da religião como uma verdade irrefutável da obra. Gera uma potência em toda manifestação presente desse místico, pois ele existe no mesmo plano da realidade, desde a consagração do amuleto até a cena em que a gangue descobre o poder que Gabriel carrega, tudo é enquadrado de forma tão direta que o que antes seria fantasia torna-se pura realização terrena.
Quando é dada a essa cultura marginalizada o poder de sua realidade no cinema, as complexidades do contexto aliadas à objetividade do gênero tomam caminhos muito maiores. Anos antes de Glauber ser acusado de “deixar de ser marxista pra virar cristão” em A Idade da Terra (1980), Nelson em Amuleto já torna o poder da religiosidade como braço da inversão de hierarquias e terrorismo de classes. O verdadeiro temor do chefão branco Severiano (Jofre Soares) é perceber-se num universo onde a crença do povo que domina tem poderes muito maiores do que ele poderia ter. Após a fortíssima cena em que recebe um orixá e ajoelha-se diante de um pai de santo, percebendo sua inferioridade perante o alcance espiritual de um negro, Severiano logo em seguida renega tudo que passou e coloca todo o caso com Gabriel, o Amuleto e tudo mais como absurdismo. Nelson pode estar tratando de uma especificidade por conta do gênero que trabalha, mas não poderia ser mais claro em mostrar como a validação concretizada de uma religião nascida pelas formas de opressão colonial ainda abalariam e desmantelariam qualquer relação de poder ainda estabelecida. São os orixás contra a autoridade.
Quando essa crença é apropriada para os fins do comando vigente, como no arco de Severiano buscando um pai de santo trambiqueiro para conduzir a situação, ela ocupa um estado falso, mesquinho, muito distante dos ápices espirituais vividos por Gabriel (especialmente em suas cenas no terreiro pouco antes do embate final). E a todo momento que Gabriel é tentado aos terrores desse sistema de opressão, a própria religião invalida as suas verdades (sua amante, ex-mulher de Severiano, comparando-o ao ex-marido justamente antes das coisas começarem a dar errado para o protagonista).
Amuleto só alcança essa qualidade quase totalizadora justamente porque nunca se atém a nada que não seja seu próprio universo. Até por ser um filme onde Nelson Pereira reavalia seu próprio cinema, é uma obra que constantemente está atrás de limitações e de reduções para poder se engrandecer. Já no título fica marcado: mesmo sendo espacialmente interessado pela Baixada Fluminense, é batizado por um objeto, não por toda uma cidade como em Rio, 40 Graus (1955), um filme que faz o caminho oposto, pois toma proporções enormes para acabar tratando do mínimo. Mais um ponto preenchido de seus interesses iniciais, é uma certeza que Nelson conseguiu a libertação desejada de querer totalizar-se já no começo. Indo mais além para renegar esses costumes de um cinema velho, Amuleto dá fim à estética da fome. Não à toa, uma de suas passagens mais emblemáticas é um banquete suburbano filmado todo no improviso.
Sem querer cercar qualquer sofrência, Amuleto trata o marginalizado através de uma lente celebratória, que não priva nenhuma exposição das camadas repressoras, mas que está muito mais interessada na resistência através da celebração da força de toda essa cultura. Poucas obras concentraram em si tanta vontade pelo que é realmente novo, pelo que jamais pode ser visto da forma que é mostrado aqui (tendo completa noção dos motivos dessas novidades serem tão temidas). Desde a trilha do Macalé que torna o canto popular em relato genuíno até o plano final de Gabriel que revive das águas pela presença de suas raízes migratórias, Amuleto de Ogum é a lenda que também é documentário, é o produto final de uma luta pela própria existência da tradição de toda uma gente. É simplesmente sobre o que existe e sobre o que resiste. Ou seja, sobre o povo. E não dá para fazer nada sobre o povo que não acredite no que cantam por aí.