A fábula do autor-animal: Alex Cox e a trilogia do ridículo

Por Pedro Tavares

“Nós nos achamos no direito de rodar, de vez em quando não filmes de alto custo,

e sim filmes que produzem filmes

Dziga Vertov

Seguindo o conceito de senso comum antropomórfico da básica literatura infantil que em sua função elementar carrega a moral como norte, fica a lição do autor-animal: faça você mesmo. Para compreender melhor a ideia do autor-animal, é preciso voltar algumas páginas de sua história, ou melhor, anos.

O jovem realizador britânico Alex Cox que fizera até então o curta-metragem Edge City (Sleep is for Sissies) (1980) como trabalho de conclusão de curso na Univeristy of California em Los Angeles estava prestes a “ser” um diretor, com estrutura, planejamento e ideia de projeção. Repo Man tinha um acordo com a Universal de produção e distribuição. Após o processo caótico de filmagem, vale a elipse para a insatisfação número um de Alex Cox sobre o descaso de produção e distribuição do filme, que passou cerca de 130 semanas em cartaz num pequeno cinema no oeste dos EUA e rendeu louros para a produtora/distribuidora. O mesmo descaso se repetiu no decorrer do contrato para três filmes que fora concluído com Sid & Nancy (1986) e Walker (1987).

Neste momento, o lado animal toma conta do autor. Já dotado de insatisfação o mercado – incluem-se críticos, festivais, produtores e associados -, por notar o desinteresse geral pelos filmes no Festival de Cannes à época da première de Sid & Nancy, quando o secretário de cultura francês ganhou mais aplausos que o próprio filme em sua estreia, Cox mudou sobre a indústria que se espelharia nos resultados lúdicos e espirituosos na trilogia do ridículo que veremos mais pra frente.

Com o tempo, Alex Cox tornou-se persona non grata em Hollywood, principalmente por usar a gordura da dinheirama prevista para Walker para fazer um spaghetti western chamado Straight to Hell (1987), enquanto a Universal resolvia burocracias políticas para que as filmagens de Walker prosseguissem.

Walker narra a história de William Walker, um mercenário que se autoproclamou presidente da Nicarágua em 1856 com intuito de dominar o país pela ditadura. Durante as filmagens, Alex Cox se envolveu com as questões da Frente Sandinista de Libertação nacional que pôs fim à ditadura estabelecida em 1936. Outro imbróglio foi o envolvimento de Alex Cox com questões éticas e políticas da Nicarágua durante a filmagem, no qual a produtora não concordava e pedia um ponto de vista mais condizente com o mercado americano. Não demorou para que o autor-animal fosse banido de quase todos os grandes festivais por expor os interesses maiores que os próprios organizadores destes eventos.

Imobilizado pelos grandes canais de divulgação, Alex Cox se encontrou nas produções independentes, com investidores mexicanos, japoneses, um fã holandês e, claro, fazendo o trabalho sujo: escreveu roteiros encomendados, incluindo o de Medo e Delírio em Las Vegas (1998), dirigiu séries e filmes para TV, como O Vencedor (1996), com o intuito de produzir e finalizar seus projetos. Desta longa temporada, saíram filmes notáveis como El Patrullero (1991), Death and the Compass (1992) e Three Businessman (1998). Vale citar o trabalho de apresentador e curador da série Moviedrome da BBC, onde introduziu filmes de Nicholas Ray, Sergio Leone, David Cronenberg, John Carpenter, Edgard Ulmer, entre tantos outros nas noites de domingo em TV aberta.

A trilogia do ridículo

A trilogia é indireta: seus meios são mais importantes que a própria narrativa. Tampouco se trata de uma aventura estética generalizada, mas um discurso da necessidade. A retórica da inspiração cria a fábula da consciência: não da moral, mas da noção de seus limites, de certo heroísmo que envolve a prática, de um retorno no raciocínio quase infantil do cinema em realizar sonhos. Este retorno também segue o pensamento que Joris Ivens já grifava em “Documentário: subjetividade e montagem”:

(…) Odiávamos aquilo que chamávamos de “grande indústria”. Não gostávamos de trabalhar para o grande capital; o que mais queríamos era fazer trabalhos independentes. Queríamos se capazes de fazer nossos filmes conscientemente, porque acreditávamos ser essa a mídia artística do educador. Nossos patrocinadores são muito especiais (…).

Composta pelos filmes Seachers 2.0 (2007), Repo Chick (2009) e Bill, The Galatic Hero (2014), a trilogia do ridículo parte do equilíbrio entre mente e matéria. São filmes que não desmoronam por necessidade de condições melhores e que levam a impossibilidade para o campo.

Searchers 2.0 foi co-produzido por Roger Corman e foi filmado em mini-DV, pouco antes da grande proliferação dos aparelhos de telefone celular. Como o nome entrega, a grande referência de Searchers 2.0 é o faroeste, apesar de boa parte do filme se passar na estrada e ter abordagem saudosa e cômica, principalmente por criticar a Motion Pictures of American Association (MPAA), o militarismo, os processos de filmagem da grande indústria, etc. É o caso de reduzir seu escopo para a ambivalência de voz e imagem, que desemboca num confronto final típico dos faroestes que exime a necessidade de balas e se torna um belo quiz sobre filmes do gênero. Este é um dos polos de duplicidade da chamada trilogia do ridículo: tratar temas espinhosos sob a manta fantástica justificada pelos limites – financeiros, principalmente. Neste caso, o caso de amor de Alex Cox pelos faroestes torna-se um suporte ainda maior para a ideia do autorismo, uma vertente muito forte em sua carreira que vai de filmes como Straight to Hell e Tombstone Rashomon (2017) a livros como 10.000 Ways to Die (2011).

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O duelo final com perguntas sobre faroeste em Seachers 2.0

O mesmo se repete em Repo Chick (2009), que assim como Searchers 2.0, estreou no Festival de Veneza – o único dos “grandes festivais” que ainda abriga os trabalhos de Alex Cox – e foi todo filmado em chroma key. Não se trata de uma sequência de Repo Man – esta sequência saiu em forma de HQ em 2008 –, mas uma nova operação em dois níveis, talvez a mais arriscada da trilogia. Pela possibilidade da variedade de materiais e universos que o chroma key oferece, toda artificialidade de Repo Chick é explícita, como se o CGI estivesse em primeiro plano sempre na ação em um filme de gênero. As palavras de Ivens valem a memória mais uma vez como o resumo geral entre a estética e sua real função:

Uma abordagem estética pura leva a arte a um beco sem saída. Para mim, um filme é muito mais importante quando está conectado a um movimento social, quando tem a ver com a vida. Não demorou muito até sentimentos que nós, como artistas, tínhamos que tomar partido na vida social, na vida econômica de nosso país; que toparíamos com uma parede lisa caso permanecêssemos no lado abstrato do esteticismo”.

Repo Chick se aproxima muito da função que os filmes de Joe Dante carregam até hoje, em especial Pequenos Guerreiros (1998). O lado plástico segue em paralelo às pequenas revoluções que o filme entrega em micro e macrocosmos (o segundo nível), com a diferença que Cox não tem amarras com um nicho de público. Da autorreferência – o desafio de recriar a cena da santa ceia de Straight to Hell, por exemplo – à variedade de preceitos usados pelo diretor no filme e à noção de maleabilidade ao “filme-monumento” que Repo Chick teoricamente deveria ser. A julgar, um filme de efeitos deveria esvaziar seus personagens. Neste caso, o filme nasce vazio e ronda seus personagens de efeitos, num caminho tortuoso e quase oposto à cartilha para fortificar trama e personagens.

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Das filmagens de Repo Chick: o chroma key abre janelas para um novo mundo.

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Personagens que arrebatam a artificialidade em Repo Chick.

Estes dois níveis usados em Seachers 2.0 e Repo Chick concluem a trilogia com Bill, The Galactic Hero. O filme foi produzido entre 2013 e 2014, já nos tempos de redes sociais e aplicativos que facilitaram muito a produção e filmagem. A começar pela pré-produção, que possibilitou o envolvimento dos fãs na campanha de crowdfunding. A equipe foi composta por alunos da turma de cinema da Universidade do Colorado, onde Alex Cox leciona.

Baseado na HQ homônima de Harry Harrison, o filme carrega o humor tradicional da obra original, porém, ironicamente, expõe de vez a melancolia nostálgica em seus meios – toda trilogia é intercedida ao comentário sobre o fazer e ver filmes, do supracitado faroeste aos filmes policiais e ficções científicas, numa espécie de reconstrução do imaginário adolescente masculino. Bill, The Galatic Hero é o que enfatiza estes meios da estética B, mais controlada que os outros dois filmes, mas não menos funcional à mise en scène. Por mais que sua função seja de, novamente, gritar o fazer pela necessidade, o filme não apaga seu caráter de reconstituição.

A pensar que este compêndio fílmico passa pela mini-DV e pelo chroma key e principalmente pela opção de completar a artificialidade de métodos, Bill The Galatic Hero se entregar ao impossível – os efeitos especiais são trocados pela animação, que abrem e encerram o filme – é uma manobra irônica, uma espécie de “quebra de regra” de seu próprio criador.

A trilogia do ridículo, um nome de tom não menos sarcástico que os filmes, pautam, em sua anarquia, a possibilidade de criação da ambivalência da imagem: em tom pop e bom humor, Cox dá sua contribuição ao estudo do encontro real com a imagem que passa por Huberman e Farocki.

O mesmo deserto do faroeste é palco de um sci-fi B; o chroma key de uma aventura pulp serve como pano de fundo para um novo gênero. E o envolvimento requerido é o mesmo. O norte primitivo, da fábula, da passividade e compreensão de um mundo possível graças à posição de baixa guarda em relação ao filme – o que geralmente cria diversas críticas negativas aos filmes, em especial a Repo Chick -, possibilita uma nova aventura. Ler a ambivalência na trilogia é um processo de convencimento, o sentir virá pela recognição.

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Astronautas no deserto – ou em novo planeta – em Bill, The Galactic Hero

A duplicidade do processo não é novidade para Alex Cox que torna a percepção elástica de unidade em sua filmografia na reimaginação, em personagens que vão e voltam, em métodos e principalmente na subversão de todos estes elementos. E é isso que faz a obra do autoproclamado “film anarchist” um processo muito agradável de se acompanhar. Faça você mesmo.

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