Por Carla Oliveira
Com a caneta suspensa para uma curta meditação, as palavras que me ocorrem ao espírito evocam a luz e o calor, com as quais habitualmente se costuma falar do amor: deslumbramento, raios, braseiro, luzes, fascinação, queimadura.
Jean Genet, Diário de um Ladrão
“Está frio aqui.” — É a primeira fala de Carol White (Julianne Moore), em Mal do Século (Safe, 1995), de Todd Haynes. A frase é dita ao marido, Greg (Xander Berkeley), à noite, ao chegarem em casa. Segue-se uma cena de sexo, a única do filme: enquadrada em plongée, vemos rubor na nuca de Greg, enquanto o rosto pálido de Carol denota desconforto. Seu corpo não sente desejo ou prazer, mas é gentil, expressa-se sempre com suavidade. Na manhã seguinte, ele lhe pergunta sobre sua sinusite, enquanto ela poda flores no jardim de sua mansão, no subúrbio da Califórnia. Em seguida, Carol recebe decoradores. Cumprindo essas tarefas de dona de casa, ela é enquadrada em planos abertos, que a evidenciam pequena e distante no ambiente de frialdade em que vive. Após aula de ginástica, onde a professora pede sorrisos às alunas durante os exercícios, suas colegas conversam sobre livro que aponta passos para se viver melhor, manejar o estresse e ter controle emocional. Há referência à necessidade de exercícios físicos e boa dieta. Observam, com espanto, que o corpo de Carol não transpira. É um pequeno sinal de que seu corpo fatigado está em descompasso com o ambiente. Em visita a sua melhor amiga, em luto pela morte do irmão — subentende-se que em decorrência da AIDS —, ela só aceita beber um copo de leite. Estamos no final dos anos 80 e muitos viram a deterioração física pela qual passará Carol a partir dessa sequência de cenas iniciais como uma metáfora dessa epidemia.
Todd Haynes, um dos nomes mais importantes do cinema independente americano, era, nesse momento, fortemente associado ao cinema queer. Seu primeiro longa-metragem — Veneno (Poison, 1991) —, premiado em Sundance, foi um dos filmes que levou a crítica B. Ruby Rich a cunhar a expressão New Queer Cinema, imortalizada como título de seu artigo, publicado na Sight and Sound 2.5 (1992). A crise da AIDS, ao levar muitos cineastas a repensar a representação dos corpos e do comportamento sexual queer nos Estados Unidos de Reagan, se tornou um importante catalisador desse movimento. Veneno foi inspirado na obra de Jean Genet e contém citações de: Nossa Senhora da Flores (1943), O Milagre da Rosa (1946) e Diário de um Ladrão (1949). Entrelaça três histórias, apresentadas em épocas distintas, cada uma com uma estética própria. A mais próxima a Genet — a que contém o lirismo das rosas —, apresenta corpos homossexuais másculos, belos, violentos e confinados em uma prisão, similares aos retratados pelo dramaturgo em seu único filme, Canção de Amor (Un Chant d’Amour, 1950), assim como aos de Querelle — Um Pacto com o Diabo (Querelle, 1982), obra de Rainer Werner Fassbinder, adaptada do romance Querelle de Brest, publicado em 1947, por Genet. O editor James Lyons, importante parceiro criativo de Haynes, atua nesse segmento. Lyons foi uma das vítimas da disseminação da AIDS: conviveu por muitos anos com a doença, trabalhando com ativismo.
Sua memória é honrada em Last Address (2010), de Ira Sachs, cineasta que também tem o seu nome vinculado ao New Queer Cinema. Uma segunda história de Veneno mostra um salto libertário, tipicamente genetiano, de um menino, vítima de vários abusos, que mata o próprio pai e sai voando pela janela. A terceira parte mostra a trágica sina de um cientista com pretensões de tratar a neurastenia e melhorar a raça humana. Ele isola e desvenda os mistérios do fluido da libido, mas o bebe por engano. A partir de então, sua pele se transforma e ele passa a transmitir sua nova condição, que se releva mortal, por aproximação sexual. A mídia, sensacionalista, o rotula de assassino leproso. Podemos ver aqui alusão e crítica à representação da AIDS pelos meios de comunicação, assim como à culpabilização de um comportamento. A reação conservadora ao pesquisador tachado de criminoso parece ser justificada pela epígrafe do filme: “The whole world is dying of panicky fright” (“o mundo inteiro está morrendo de pavor”), mas não se pode esquecer e deixar de retratar o medo e a dor dos contaminados, perseguidos pela sociedade. É interessante observar que no primeiro filme hollywoodiano sobre a AIDS, Filadélfia (Philadelphia, 1993), de Jonathan Demme, o personagem acometido pela doença (interpretado por Tom Hanks) move processo contra a empresa que o demite, alegando que as lesões de sarcoma de Kaposi (câncer comum em doentes aidéticos) presentes em seu rosto foram o motivo de seu desligamento. Em ambos os filmes, há um sinal da doença no próprio rosto, a doença “está na cara”, estigmatizando, tornando o doente ainda mais vulnerável ao preconceito e às injustiças da sociedade.
Mal do Século, que tem roteiro original de Haynes, não retrata diretamente a comunidade queer. O mal que acomete Carol, ao contrário da AIDS, não mina o seu sistema de defesa, deixando-a vulnerável. É exatamente o contrário. A síndrome que desenvolve faz com que ela se torne hiperreativa, cada vez mais sensível ao seu ambiente, principalmente aos químicos nele presentes, até que não consiga mais o habitar. Dos sintomas inespecíficos iniciais — dores de cabeça, desânimo, cansaço, inapetência, transtorno do sono —, ela evolui para um desconforto respiratório progressivo. À direção de seu carro, um acesso de tosse inicia, de forma insidiosa, quando ela se vê envolta por caminhões, e se intensifica ao entrar em um estacionamento onde precisa percorrer trajeto vertiginoso para baixo (uma metáfora da sua deterioração). Ao conseguir uma vaga, sai do carro ofegante, com a respiração pesada, arquejante. Procura um médico, que não vê nada muito alterado em seu quadro. Ao tentar uma mudança em seu aspecto — um novo corte e a aplicação de um permanente no cabelo (o que é feito com produtos químicos) —, ela tem um sangramento. Há dilaceramento, ruptura dos limites entre seus meios interno e externo. Sua pele pálida e fria passa a sofrer inúmeras erupções. Sua intolerância alimentar aumenta, passa a apresentar vômitos. Seu corpo, cada vez mais fraco e emagrecido, pouco se equilibra, e ela se sente confusa e desorientada em sua própria casa, junto à sua família.
Nessa derrocada, Carol procura novamente médicos tradicionais. Um alergista comprova que seus sintomas são desencadeados pela multiplicidade de produtos químicos com os quais tem contato em seu ambiente. Considerações sobre a dieta são feitas. Suplementações de oxigênio se tornam necessárias. Afasta-se das amigas, deixa de cumprir eficazmente a sua rotina. Em seu mal estar, é bombardeada pela publicidade e pela mídia com notícias sobre ambientalismo, tratamentos e concepções alternativas do corpo. Após uma internação em decorrência de uma crise convulsiva precipitada pelo contato com produtos para dedetização, ela se vê incapaz de se adequar às transformações do ambiente e da sociedade em que está inserida e decide partir para um centro terapêutico alternativo, dirigido por uma espécie de guia, afastado da cidade, situado em um deserto. Aqui está o principal comentário político de Haynes nesse filme.
Em entrevista a Larry Gross, publicada na Filmmaker Magazine, ele disse ter realizado Mal do Século em resposta aos terapeutas New Age que propalam serem os doentes os causadores de suas próprias enfermidades, os responsáveis por seus próprios sofrimentos. Ele fala do seu espanto ao se deparar, nos anos 80, com gays contaminados pelo HIV à procura de gurus que literalmente os culpavam por sua própria doença e diziam que eles poderiam se sentir melhor simplesmente desenvolvendo o amor-próprio. Ao se instalar no centro terapêutico, Carol é recebida em uma cerimônia de boas-vindas, onde uma política de moralidade e policiamento do desejo é expressada. Sua vida e relações pregressas ficam em suspenso. Mesmo com as práticas e os grupos de ajuda, suas solidão e alienação só aumentam. Confinada, ao final, em uma habitação semelhante a um iglu, ela repete, com o semblante sofrido, em frente ao espelho: “Eu te amo. Eu te amo muito.” Em vão.
Em Velvet Goldmine (1998), seu terceiro longa-metragem, Todd Haynes voltará a direcionar a sua atenção aos corpos queer, que se mostrarão ágeis, purpurinados, transgressores. A vulnerabilidade, o sofrimento e as lutas das minorias serão destacados em filmes subsequentes, como em Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002) e Carol (2015), denunciando o racismo, a intolerância e o preconceito da sociedade americana, em diferentes épocas. Mas os corpos de seus protagonistas serão mais firmes, nunca mais chegarão aos limites da vida como em Veneno e Mal do Século.