Por Zoë Masan
“Que importa pois que o desespero ignore seu estado, se nem por isso deixa de se desesperar? Se o desespero é desvario, a ignorância ainda o torna maior: é estar ao mesmo tempo desesperado e em erro: Tal ignorância está para o desespero como está para a angústia, a angústia do nada espiritual reconhece-se precisamente pela segurança vazia do espírito. Mas, no fundo, a angústia está presente, assim como o desespero, e quando se suspende o encantamento das ilusões dos sentidos desde que a existência vacila, o desespero que espiava, surge.” — Søren Kierkegaard
Planos estáticos, ações lentas que priorizam um minimalismo narrativo, o silêncio e a hipervalorização da subjetividade são algumas das caraterísticas que mais se mostram presentes ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Esses elementos são instrumentalizados para fazer uma constante denúncia de uma degradação mental. As personagens de Akerman se destroem e voltam à vida para se destruírem novamente, em um exercício sádico pela busca da libertação mental.
Em suas produções, Chantal Akerman fazia uso de planos fixos que valorizavam o minimalismo das ações dentro do enquadramento. É também aplicada uma subjetividade latente muito peculiar, evidenciando os ideais mecanicistas e repetitivos do neoliberalismo, expondo os efeitos do patriarcado inerente a esse neoliberalismo e deixando evidente alguns efeitos mais subjetivos desse mecanismo: os transtornos mentais.
Na obra mais aclamada de Akerman, Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce 1080 Bruxelles (1975), é narrada a rotina de Jeanne Dielman, uma mulher invisível e invisibilizada por sua própria rotina, configuração familiar e profissão. Jeanne realiza diariamente as mesmas ações e sua solidão também fica explícita em toda narrativa, no nível da estrutura e do sentido por meio de um elemento em especial: o silêncio. A relação de Jeanne com o filho, os cômodos de sua casa, e até mesmo a profissão sexual que ela exerce são envoltas pelo silêncio. Esse elemento é amplamente trabalhado ao longo da filmografia de Chantal Akerman. Através do silêncio é possível amplificar subjetividades que talvez ficariam deturpadas pelo diálogo. Além disso, o silêncio é elemento que delineia tensões, que associadas à rotina quase mecânica da personagem potencializa a angústia para quem assiste. David Bordwell define esse modo estilístico dizendo que “o cinema de arte é menos preocupado com a ação do que com a reação; é um cinema de efeitos psicológicos em busca de suas causas” (Bordwell, 1979, p. 58).
É interessante como Akerman brinca com a temporalidade por meio de planos longamente hiperrealísticos, fazendo com que a deterioração mental — que reflete na deterioração da rotina — fique cada vez mais aparente. A ruptura mental de Jeanne não é algo que acontece repentinamente, é apenas um efeito de uma série de violências silenciosas as quais a personagem é submetida ao longo do filme. Akerman trabalha detalhadamente todos os movimentos da personagem e a rotina de Jeanne passa a se deteriorar diante dos nossos olhos.
Um ponto interessante é que dentro de um cinema do tédio, até mesmo o ato de fúria se torna previsível. Akerman não pretende surpreender com o plot, mas observar reações e causar uma tensão claustrofóbica no espectador. Talvez Jeanne Dielman seja o filme de Akerman que mais evidência e instrumentaliza os maneirismos do slow cinema para criar uma narrativa disfuncional propositalmente sistemática.
Em L’homme a là Valise (1983), Chantal Akerman também faz um estudo da rotina, dessa vez, alterada por um elemento estranho, um visitante. A construção narrativa trabalha com um subjetivismo tão intenso que é possível serem feitas diversas interpretações acerca do que realmente significa a figura masculina que persegue Akerman em seu próprio apartamento.
É possível observar em L’homme a là Valise alguns fatos que acontecem em cena: um visitante chega com uma mala no apartamento da personagem interpretada por Akerman, e rapidamente passa a se tornar um elemento indesejado, ceifando a privacidade com sua capacidade de invasão dos espaços privados da personagem. A partir disso, é possível trabalhar com diferentes perspectivas quando se analisa o filme, uma delas é a do bloqueio criativo representado pelo elemento do visitante que se instaura e age como um bloqueador de rotina, impedindo que a personagem possa realizar suas tarefas do dia-a-dia, como por exemplo, escrever. Também é possível interpretar esse visitante como um elemento patriarcal que persegue e sufoca a personagem onde quer que ela vá. No entanto, será analisado aqui uma perspectiva ainda mais subjetiva, que une um pouco das interpretações anteriores. O visitante com a mala pode ser visto como uma alusão clara à depressão e demais transtornos psicológicos. Primeiramente, a personagem está em um estado de isolamento extremo, visto que todo o filme se passa dentro desse apartamento onde não há visitas e quase nenhum contato com o mundo externo, com exceção de uma TV velha e um telefone. Em todas as cena, o visitante quebra esse isolamento, mas não completamente. Esse visitante age como um elemento de supressão dos sentidos mais básicos e fundamentais do ser humano. A presença dele torna a personagem de Akerman incapaz de comer, tomar banho, cozinhar, trabalhar, se comunicar, e posteriormente, sair do quarto sem precisar traçar planos para não o encontrar em algum cômodo. Esse elemento se instaura como parasita psíquico que aleija e deixa a personagem gradativamente vulnerável.
No terceiro ato, é possível perceber que a incapacidade da personagem resulta em um quarto bagunçado, com todas as roupas no chão, uma tv velha em cima da cama e um estado de inércia espiritual muito profundo. O cinema de Akerman é um cinema de gradação de efeitos e de um estudo de subjetividades quase que autobiográfico. Chantal Akerman cruza muitas vezes a linha do existencialismo e culmina em um niilismo psíquico, como efeito natural da deterioração mental na vida de seus personagens, e porque não, em sua própria vida.
A angústia existencial é um denominador comum nas principais obras de Akerman. Há um apreço pela utilização do silêncio e de planos estáticos para emergir uma não-dramaticidade que só leva ao expurgo psicológico. A diretora trabalha com “a estaticidade do olhar estendido da câmera configura um espaço e tempo em que a tensão lentamente, inevitavelmente, se constrói, chegando a um ponto de crise psicológica” (FLANAGAN, 2012, p. 82).
Akerman se utiliza dos maneirismos do slow cinema para exercer uma fenomenologia existencial sob as estéticas do gênero. O elemento de angústia no cinema de Akerman pode ser entendido como ponto de desenvolvimento da própria mise-en-scène, onde são compostos, em sua maioria, cenários de dramatização sóbrios, com elementos de cena que sinalizam uma falsa organização que precede o caos. Essa angústia se dá a partir de pontos aparentemente distintos, mas que fazem uma interseção em comum: a angústia sexual, a angústia da morte e a angústia existencial. Falando primeiramente da angústia existencial, é possível observar como essa se dá frente ao sentimento de completo vazio e esse sentimento aflora frente a divagações e conflitos que os próprios personagens sofrem diante da tela. Desilusões amorosas, incomunicabilidade, depressão, ódio e exaustão mental. Nesses personagens, é possível ver a evolução desse sentimento de nada, Heidegger classifica isso como “a possibilidade da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser)” (HEIDEGGER, 1996, p. 59). O nada como aspecto naturalmente humano percorre em toda a estrutura fílmica como algo praticamente determinista, um sentimento inevitável diante desses conflitos e da própria existência.
Akerman consegue conciliar elementos como angústia e vazio no drama Je, Tu, Il, Elle (1979), onde diante de um rompimento com sua namorada, uma mulher entra em uma espiral depressiva. A angústia sexual presente se manifesta a partir da repetição compulsiva da personagem que come açúcar de um saco de papel, sua tentativa de escape através da escrita e eventualmente através de outras relações sexuais. Parece que, em todo o momento, há uma preocupação muito grande em esconder a dor real da personagem e todas suas potencialidades, pois a angústia que acontece internamente é muito mais devastadora do que se mostra aparentemente.
A angústia leva a personagem a encontrar um caminhoneiro, e com ele, ela tem uma relação sexual. Nas cenas com o caminhoneiro, há um empenho aparente da personagem em tentar estabelecer um contato mais profundo com o caminhoneiro, demonstrando que, diante do rompimento, existe a necessidade urgente de continuar o contato sentimental e sexual com alguém. As cenas são escuras, com enquadramentos que quase tiram a personagem de Akerman do plano. É como se fosse um momento vergonhoso de busca por uma válvula de escape. Isso fica claro quando o reencontro com a namorada acontece e, novamente, o elemento da expurgação aparece em uma das mais belas cenas de sexo do cinema. É um alívio em meio à angústia latente que existe na maior parte do filme. E da mesma forma que o reencontro é purificador, o abandono toma a mesma proporção de devastação total e isolamento.
O curta Saute Ma Ville (1968) sintetiza muito bem como a decomposição da mente se dá no cinema de Akerman. Em seus pouco mais de 12 minutos, o curta mostra uma rotina à beira do caos através de uma observação intensa da personagem que, ao voltar para casa, arquiteta o próprio suicídio. A observação intensa da personagem para si mesma, seja através do espelho ou sentada no chão da cozinha, engraxando os sapatos, mostra um misto de auto crueldade e piedade muito grandes. De forma implícita, ela se questiona se deve mesmo levar seu plano adiante, ao mesmo tempo em que percebe que continuar com a própria vida não vale a pena. Akerman nos mostra uma mulher-bomba, dentro de tantas outras mulheres-bombas presentes em seus filmes. Quando a mente falha, todo o sistema falha e a libertação desse sistema deve acontecer da forma mais efetiva e definitiva possível.
O cinema de Chantal Akerman é marcado por uma repetição dos padrões que denunciam o fim da mente. A psique tem sede de obliteração e esta se dá através da morte e do sexo. A morte de si mesmo ou do elemento que a aprisiona. O silêncio é o som mais poderoso de fúria.
NOTAS:
- BORDWELL, David. To the Distant Observer. Berkeley; Los Angeles: California UP, 1979. Print.
- FLANAGAN, Matthew Slow Cinema: Temporality and Style in Contemporary Art and Experimental Film. 2012
- HEIDEGGER, M. Que é Metafísica? Os pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1996