HOMEM-ARANHA 2: Sobrenatural como manifestação do caráter humano

Por William Andrades

O Homem-Aranha 2 (2004), de Sam Raimi, evidencia um caráter super-heróico que potencializa o sobrenatural enquanto fantasia de cunho heróico ao mesmo tempo que define um contexto dramaturgo tanto de mito quanto de humanidade. É um filme que foca na identificação e admiração do mito, ao mesmo tempo que disseca a questão de como o sobrenatural age no mundo real. Talvez seja o filme de super-herói que mais abraça a ideia de discutir os temas que o subgênero traz consigo. A ideia da figura mítica que tem uma vida dupla; o dever moral do altruísmo; o sobrenatural como manifestação do caráter humano… Afinal, o que Peter Parker (Tobey Maguire) faz que o torna um super-herói?

Sam Raimi é uma escolha certeira para os filmes do Homem-Aranha. Vindo do cinema de horror, o diretor entende do universo da fantasia, de potencializar o ridículo como sério, de manter um certo humor ao mesmo tempo que abraça todas as possibilidades dramaturgas ali. Ele tem sua própria linguagem, usa muito da câmera subjetiva, muitas cores saturadas. Mas aqui o cineasta talvez tenha feito seu filme mais sóbrio. Mesmo assim, ele se dá ao luxo de brincar um pouco. A cena do hospital tanto brinca com seus filmes anteriores (a motosserra, referência direta a Evil Dead, de 1981) quanto com o gênero de horror em si. Após seu fracassado experimento, Otto Octavius (Alfred Molina) está em uma cama de hospital sedado, com os médicos se preparando para remover seus braços metálicos, que despertam e começam a matá-los sem consciência de Otto. Quando Otto desperta, ele vê o monstro que se tornou. A cena usa de todos os gags que o cineasta criou e aprimorou na sua trilogia Evil Dead. Esse cinema muito objetivo que se diverte ao mesmo tempo que cumpre com precisão o horror. Se decuparmos, pode parecer um momento muito deslocado em termos de tom, mas funciona porque o filme tem uma inocência na maneira como retrata a fantasia, e apesar da chacina, ele estiliza o suficiente para dramatizar o momento sem torná-lo ofensivo.

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Desde o início o diretor quer deixar claro o quanto ele acredita naqueles personagens como figuras humanas e com potencial tanto fantasioso quanto dramático, e mescla as duas coisas de uma maneira muito interessante. Toda essa ideia de discutir num nível quase teatral (o filme tem muito mais diálogos do que momentos de ação ou imediatismo) o tema heroísmo não é por acaso, Raimi evidentemente queria tornar as coisas mais clássicas. Existe toda uma encenação, na maneira como ele coloca os personagens na cena de forma organizada para o diálogo, na Nova York vintage começo dos anos 2000, que torna as coisas teatrais. Nos diálogos ele usa os planos/contra planos mais simplistas possíveis, mas que acabam criando algo mais definidor. É formalismo pela técnica e classicismo pelos temas abordados. Ele não esconde nada, filma tudo de uma maneira muito direta e sem chamar a atenção para si. É uma criação de mitologia e de sentimentos feito com muito pouco e de maneira minimalista. Na cena em que Peter confessa para a Tia May (Rosemary Harris) sobre sua culpa na morte de seu tio (Cliff Robertson), apenas o olhar dela pra ele já possui mais sentimento que qualquer filme da Marvel dos últimos 10 anos.

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Existe toda uma questão, bem clichê até, de relações humanas que tem tanto um potencial para o ridículo quanto para o mítico. O segredo que o herói guarda da sua tia, o romance não consumado, o amigo buscando vingança. Ainda que seja um filme bem sóbrio, Raimi já dá indícios da cafonice que ia abraçar no terceiro filme. Aqui, por enquanto, todos os dramas têm uma carga muito pesada, ainda que tenham um humor muito particular. Lembra um pouco o cinema do Shyamalan, cineasta que também se aventurou pelo gênero por acreditar no potencial dramaturgo da fantasia do super-herói e trabalhar bem o humor ali. Existe uma fé naqueles enquadramentos, naqueles sentimentos. O contato humano, a troca de olhares… É enriquecedor.

Raimi trabalha o personagem de Peter de um jeito muito particular. Ele desenvolve o personagem num tom cômico e levemente melancólico. Acompanhamos o seu cotidiano com todos os empecilhos que isso traz. Ele é humanizado através das dificuldades e prazeres mundanos, seja chegar no horário na faculdade ou receber uma festa surpresa de sua tia. Todos os conflitos do personagem são estruturados nessas dinâmicas muito comicamente realistas, como por exemplo a cena da festa no planetário. Peter não apenas briga com seu melhor amigo e vê a mulher que ama sendo pedida em casamento por outro, mas ele se frustra nos intervalos desses momentos. São pequenas gags do protagonista tentando pegar algo que uma garçonete está servindo e alguém pegando primeiro, ou ele pegando um copo que estava vazio.

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Isso que torna mais na frente uma cena tão importante, onde ele questionando se deve sacrificar seus sonhos para ser o Homem-Aranha, recebe uma visita de sua vizinha, uma pessoa desimportante em sua vida, lhe oferecendo um pedaço de bolo. Raimi dedica mais ou menos um minuto de filme a essa cena supostamente desinteressante. Acontece que, esse breve respiro, esse momento de aconchego e intimidade do personagem, dá a sutileza humana que ele precisa. Ele não é apenas uma peça nessas dramatizações todas, o fator identificação é mais importante que a ambição pelo épico que o arquétipo traz. Peter recebe, em resumo, uma boa e simples ação. Esse momento o revitaliza com os quadros mais simples que um diretor poderia elaborar. Mostra um certo contraste, “quebra” a construção do personagem que vinha seguindo um certo padrão de ridicularizá-lo/ocupá-lo.

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Em seguida, Peter vai visitar sua tia, que não via desde que a contou que era o culpado pela morte de seu tio. Ela está de mudança (os afazeres mundanos como escopo dessas discussões é algo que se mantém por todo o filme), sendo ajudada por uma criança que admira o Homem-Aranha e questiona Peter sobre onde ele está. Peter diz não saber, diz que o Homem-Aranha precisou de um tempo, que queria fazer outras coisas. Sua Tia diz que o menino quando crescer quer ser o Homem-Aranha, e Peter pergunta o porque. Então ela começa o que pode ser o discurso mais definitivo sobre super-heróis, daqueles momentos enriquecedores que o cinema de herói não via desde que Richard Donner e Christopher Reeve mostraram ao mundo que o homem podia voar, em 1978. Ao mesmo tempo em que temos certas pistas de que ela pode saber sobre o alter-ego do sobrinho, o diretor não se importa com isso (algo que seria pensado primeiro em um filme da Marvel ou DC atual). Ela fala (ou seria o próprio Raimi?) sobre o poder do super-herói em uma criança, da sua figura de coragem e sacrifício, sobre como as pessoas reagem a essa figura mítica, como o admiram, querem ter apenas um deslumbre seu pelos céus que lhes dá esperança para continuar mais um dia.  Peter percebe não apenas que o Homem-Aranha é muito maior do que ele, mas que de uma certa forma o ajudava a continuar no dia a dia. É um discurso tanto definidor para o gênero quanto para o filme em si. E ao final da cena, ela pede para que ele a ajude na mudança.

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A ideia do sobrenatural no filme, do lado místico das coisas, é apenas um mote para potencializar discussões muito humanas e diretas sobre heroísmo e sacrifício. Os dons são retirados de Peter no momento em que ele passa a perder sua vontade. Não pode haver heroísmo sem sacrifício, sem altruísmo. É esperto do Raimi simplesmente não se preocupar em como os poderes dele vão e voltam. Não existe uma explicação científica como nos filmes da Marvel ou um realismo limitador como nos da DC. Aqui existe um universo particular onde antes é pensado os fatores humanos e depois os fantásticos. O mito é feito por seres fantásticos que representam condições humanas, e o Raimi disseca isso.

Existe outra cena muito emblemática. Peter, sem poderes, se depara com um incêndio no bairro. Ele decide se afastar como um civil comum, mas ao saber que tem uma garotinha ainda presa no prédio, ele decide entrar e salvá-la. Essa cena, por si só, já é poderosa. Até aí você tem todas as questões definidas numa cena de ação. O herói enquanto indivíduo, o perigo como potencializador do altruísmo. Mas, enquanto se recupera, Peter descobre que havia mais alguém no prédio que morreu. Ele percebe que precisa se mistificar para ser um super-herói. Peter enquanto pessoa, não é o suficiente. Apenas o mito pode transcender. E isso se torna uma questão catártica mais adiante no filme.

A cena do trem é o momento chave da trilogia. Primeiro, temos todas as questões morais postas à prova. Peter, mesmo se morrer, irá parar aquele trem e salvar aquelas pessoas. Segundo, temos os conflitos que antes eram implícitos agora realmente encarados pelo protagonista. É o momento em que o personagem percebe que não precisa deixar de ser Peter para ser o Homem-Aranha. Mas para ser um super-herói, ele precisa ser o Homem-Aranha. O indivíduo por si só não basta, ele precisa do sobrenatural para se mitificar. As pessoas no trem o reconhecem como um sujeito comum, mas também o engrandecem enquanto mito.

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O sobrenatural se encaixa como um reflexo do estado humano do protagonista. Os poderes que dependem da força de vontade, os braços mecânicos que se alimentam do desespero de seu hospedeiro. A questão de Raimi não é subverter (o que poderia se esperar em um plot de herói sem poder) o sobrenatural mítico, mas evidenciar o que faz de Peter Parker um super-herói. Ele destrincha todo o mote do gênero em prol de um estudo muito humano das questões que transformam a fantasia. Existe um tom muito cômico nessa ideia, quase que como um “Peter Parker vai a terapia”. Essa ridicularização e mitificação é essencial. Peter só consegue se enxergar como humano quando não tem os poderes. “Agora eu sangro se bater em mim”, diz ele a Mary Jane (Kirsten Dunst). Nesse tempo sem poderes ele precisa se provar sem a máscara, e isso envolve os fatores mais humanos (confessar a sua tia que a morte de seu tio é sua culpa) e até coisas mais heróicas, como salvar uma garotinha de um incêndio. O sobrenatural age como potencializador incontrolável do caráter. Testar o sujeito, dizer que ele pode ou não ser um super-herói. Uma discussão de dentro para fora. O filme de super-herói que mais desconstrói e engrandece o gênero.

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