DUELLE, NORÔIT – O místico contra o convencional

Por Bernardo Moraes-Chacur

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Em março de 1950 Jacques Rivette redige um de seus primeiros artigos, ‘Nós não somos mais inocentes’. No parágrafo inicial, o futuro diretor já defendia como ideal uma “confusa evidência do signo, que transcende todas as interpretações e limitações”. A definição pode soar obscura, mas viria a ser bem demonstrada ao longo de sua filmografia, conforme atestam Duelo (Duelle, 76) e Noroeste (Norôit, 76), parte da série (incompleta) Cenas da Vida Paralela. Podemos pensar nesses filmes sob mais de um prisma – nenhum dos quais fornecerá explicações definitivas. Resultado adequado para um artista que tratou a indeterminação como uma virtude – e não um defeito – da ficção.

Prisma 1: Crítica, cinefilia

No artigo mencionado, Rivette lamenta a perda da “densidade, plenitude de significação”, articulada por diretores como Stiller, Murnau e Griffith. De acordo com o texto, a “desajeitada sistematização de uma linguagem, de uma sintaxe que Griffith precisou elaborar para se exprimir ” havia reduzido o cinema a uma retórica na qual “tudo se deve dobrar às fórmulas habituais e polivalentes, estereotipadas para todos os usos: o universo é capturado e destruído sob uma rede de convenções formais, que correspondem cinematograficamente às convenções da razão e, portanto, de ser”. Note-se que o que está em discussão não é apenas estética: para Rivette, o perigo do convencionalismo formal é sua equivalência a modos de pensar igualmente restritos.

Mas como conciliar essa aparente aversão por uma linguagem formulada em Hollywood e o apreço que, como crítico, Rivette demonstrou por Hawks, Preminger, Lang etc., inseridos nessa tradição?  Ou com o fato de que, quando concebeu Cenas da Vida Paralela, pretendia que cada filme se relacionasse a um gênero clássico (romance, policial, aventura de piratas, musical)? E, finalmente, que exaltasse o realismo e o exemplificasse a partir de um surrealista (Cocteau)?

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Duelle narra o conflito entre dois entes sobrenaturais: as filhas da Lua e do Sol, manipulando um grupo de mortais para conquistar permanência no plano físico. Esse pano de fundo místico, no entanto, só se revela gradualmente. A história é contada a partir de clichês da ficção detetivesca: motivações ocultas, pessoas e objetos perdidos. O filme noir, gênero pretensamente realista, se torna sobrenatural a partir da simples exacerbação de seus elementos tradicionais. Se Rivette ainda perseguia como diretor o realismo que defendera como crítico, qual era o real que buscava capturar?

Primeiramente, a evidenciação do absurdo e do irreal inerentes a qualquer narrativa, escamoteados sob a ilusão da verossimilhança. Ainda mais, uma celebração do potencial significativo da realidade e do cinema. O que Rivette condenava na retórica era o empobrecimento do sentido, a limitação do mundo em preconcepções. Aquilo que celebrava nos melodramas de Griffith ou nos faroestes de Hawks era a sua capacidade de gerar novas camadas por meio da mise-en-scène. Duelle explora uma riqueza de sentido – na edição, nos cenários, na presença física dos atores, nos enquadramentos e nos movimentos de câmera – que não se esgota pela ausência de uma trama coerente e de resolução inequívoca.

A abordagem era estranha para os tradicionalistas da então – que desprezavam o nonsense – e talvez seja igualmente insólita para um público contemporâneo – que tende a enxergar a ficção como um quebra-cabeça à espera de solução.

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  1. Narrativa serial

Em tempos pós-internet, espera-se que as narrativas sejam completas (ou completáveis) e tracem um arco satisfatório. Cada origem deve ser contada (e periodicamente, recontada) e espera-se igualmente um fim, ou pelo menos clímax. Em décadas anteriores, entretanto, embarcar em uma história serializada implicava em aceitar que princípios e conclusões poderiam estar inacessíveis. Episódios de TV, filmes e gibis eram consumidos fora da ordem de lançamento ou da sequência diegética. Uma trama era tecida a partir da disponibilidade de seus fragmentos e as lacunas eram inevitáveis.  Em contraste, se há alguns anos soaria absurdo preocupar-se com a cronologia da série 007, em 2018 os estúdios Marvel gostariam de convencer o público da necessidade de ver ou rever cerca de vinte filmes de modo a garantir a inteligibilidade de Guerra Infinita.

Nos créditos iniciais, Duelle é apresentado como Cenas da Vida Paralela: 2. Já Norôit é anunciado como a terceira parte da tetralogia, sendo que o primeiro e o quarto episódios jamais veriam a luz do dia. Caso a série tivesse sido completada, seria possível divisar um painel mais amplo, uma conexão entre cada filme?

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Norôit é um conto de vingança entre facções de piratas, cujas líderes talvez tenham poderes mágicos e talvez se relacionem com o conflito sobrenatural aludido em Duelle. Indícios de uma mitologia comum? Ou pistas falsas, capazes de sugerir conexões? A própria separação entre pistas falsas e verdadeiras seria, por acaso, aplicável? Desde os seriais de Feuillade na década de 1910, até a alegada Era de Ouro da Televisão, um século mais tarde, há um forte elemento de improviso na concatenação da intriga, disfarçado sob a ilusão de um sentido maior, cuidadosamente premeditado. Rivette traz essa desordem para o primeiro plano, tornando-a objeto de reflexão e de exploração.

Em Duelle, em Norôit e nos noirs da Hollywood clássica há constantes menções a personagens e eventos anteriores à trama e que não serão necessariamente descritos ou esclarecidos. Em qualquer relato, algumas lacunas geram novas histórias enquanto outras persistem como mistérios. Elas não são um defeito a ser corrigido, pelo contrário, são parte inseparável do potencial narrativo.

3: Citações

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A identificação de fontes ainda é um método bem difundido de explicação, como se cada obra ficcional fosse definida por inspirações pré-existentes (mitos, arte, fatos históricos). É uma superstição semelhante à crença de que a etimologia esgota o significado das palavras em qualquer uso posterior. Nesse raciocínio, as citações são privadas de seletividade, inversões, mal-entendidos ou qualquer outro deslocamento semântico.

Norôit possui pontos de contato com O Tesouro do Barba Ruiva (Fritz Lang, 1955) e aproveita o mesmo castelo em que Vikings, os Conquistadores (Richard Fleischer, 1958) havia sido filmado. A série Cenas da Vida Paralela tinha como título original Les Filles du Feu, o mesmo de um livro de Gérard de Nerval. Durante a gravação de Duelle, William Lubtchansky, diretor de fotografia, pensava em Delvaux enquanto preparava um determinado enquadramento. Esse emaranhado não é uma Pedra de Roseta, mas ‘apenas’ a manifestação de um fenômeno presente em qualquer ato de comunicação – muito embora o colecionismo de referências possa ser tornar um fim em si, como em Stranger Things.

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Paul Delvaux, Trains du Soir, 1957

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Há também uma peça teatral em Norôit, cujo título não é mencionado no decorrer do filme, ainda que alguns elementos sugiram Hamlet: inglês elisabetano, certas situações, a caveira. Mas o circuito da citação não se fecha: uma leitura atenta dos créditos iniciais esclarece tratar-se de A Revenger’s Tragedy¸ texto de atribuição incerta do começo do século XVII. A escolha (sugerida pelo roteirista Eduardo de Gregorio) é bem representativa do método rivettiano: a ilusão de familiaridade, o familiar tornado estranho.

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  1. Filosofia, ética.

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Conforme já mencionado anteriormente, em Duelle as filhas da Lua e do Sol disputam entre si o direito de continuarem existindo no plano físico. As deusas são como duas proposições mutuamente excludentes: a realidade de uma necessariamente eliminará a da outra. Na obscura conclusão do filme, nenhuma das duas sai vencedora. É possível traçar um paralelo entre esse arco e discussões filosóficas cujas implicações ultrapassam o cinema. Deleuze, em Diferença e Repetição, comenta o conceito liebniziano de compossibilidade:  para que algo exista, não basta ser possível, mas é também necessário que sua existência seja compatível com as demais coisas existentes. De acordo com essa lógica, o mundo possível é uma soma de afirmações não contraditórias.

Ao longo do tempo, partes da ciência e da filosofia complicaram consideravelmente essa imagem, ao relativizar a percepção e a descrição da realidade. Diferentes premissas podem ser simultaneamente válidas e nenhuma delas, segundo essas teorias, deve estar acima de crítica e reflexão. Tal virada compromete as pretensões a uma verdade absoluta e imutável.

Havia, desde o final do século XIX, um certo otimismo entre as vanguardas quanto ao papel da arte em difundir uma visão menos estática do mundo. Para elas, as formas de representação tradicionais estariam impregnadas pelo pensamento hegemônico e não se prestariam a um questionamento efetivo da ordem das coisas. Em contrapartida, acreditava-se que as narrativas não-lineares e autorreflexivas contribuiriam para a contestação do discurso dominante e para novas concepções filosóficas, sociais e culturais.

Em Kill All Normies: Online Culture Wars from 4chan and Tumblr to Trump and the Alt-Right, Angela Nagle defende uma hipótese sombria: a utopia das vanguardas – a contestação da cultura oficial e a proposição de um pensamento alternativo – foi concretizada pela extrema-direita, a partir de métodos e objetivos bastante diferentes. Se o argumento soa controverso, um fato parece incontornável: a despeito das melhores intenções perspectivistas, o autoritarismo e a falta de empatia permanecem entrincheirados em nossa sociedade. Nesse contexto, a que fim se prestou todo o questionamento empreendido esteticamente por Rivette e outros artistas?

Ao longo deste ensaio, utilizamos o cinema rivettiano como contraponto a uma certa estreiteza no discurso cultural contemporâneo, com sua ênfase em respostas inequívocas, explicações fáceis e na erudição autocongratulatória. São alvos aparentemente inofensivos, mas indicativos de tendências altamente regressivas. Nesse contexto, a pertinência de Rivette é justamente a sua resistência à inércia, a indicação de que a imaginação pode ir mais longe. Em tempos atuais, como em qualquer outro período, trata-se de um exercício imprescindível.

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  • 1 Rivette chegou a rodar algumas cenas da primeira parte, mas só veio a retomar o projeto anos depois – e com outros atores – em A História de Marie e Julien (2003).
  • 2 Conforme reportado na Sight and Sound por Gilbert Adair em 1975.
  • 3 Publicado anonimamente em 1607, atribuído a Cyril Tourneur durante séculos (e assim creditada em Norôit), atualmente considera-se mais provável que tenha sido escrito por Thomas Middleton.
  • 4 Segue boa resenha do livro em questão: https://lareviewofbooks.org/article/dialectic-of-dark-enlightenments-the-alt-rights-place-in-the-culture-industry/#!

Agradecimentos especiais a Juliana Fausto e Marcus Martins pela imprescindível troca de ideias durante a elaboração do texto. A Victor Lopes e Eduardo Coutinho (que não é o finado cineasta) pelo interesse.

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