A INQUIETAÇÃO DO OLHAR PELO MISTÉRIO DAS PORTAS

Por Camila Vieira

Dentro do cinema, a porta pode ser pensada como ferramenta de mise-en-scène que permite o recorte do olhar e o enquadramento do campo de visão. No entanto, ela é capaz de reconfigurar uma espécie de entre-lugar que torna possível o acesso a mundos imprevisíveis e desconhecidos. Em dois longas-metragens brasileiros, A Misteriosa Morte de Pérola (2014), de Guto Parente, e O Sol nos Meus Olhos (2012), de Flora Dias e Juruna Mallon, a porta é o elemento visual que perturba o olhar, ao mesmo tempo, em que se arquiteta como limiar para mergulhar em uma dimensão misteriosa e fantasmagórica.

Após se mudar para um casarão antigo e sombrio, uma mulher é tomada pelo medo e pela solidão, em A Misteriosa Morte de Pérola. Na primeira sequência, o olho fechado de Pérola é filmado com o zoom de uma câmera de vídeo. Suas pálpebras estão cerradas (Fig. 1) e ela está adormecida e deitada na cama. Quase ao final do filme, o rosto de Pérola é novamente filmado por uma câmera de vídeo. Mas o zoom agora produz um plano fechado do olho aberto de Pérola (Fig. 2). Ela encontra-se morta com o corpo estirado no piso de madeira de seu casarão fúnebre. Entre um olho adormecido e um olho morto, o filme lança ao espectador uma experiência cambiante, nebulosa, difusa, entre o onírico e a morte.

Fig. 1
Figura 1

Fig. 2
Figura 2

O trânsito entre o sonho e a morte faz proliferar imagens espectrais, que procuram romper a temporalidade linear por meio de repetições. O close no olho de Pérola é repetido, mas cada plano é produzido em tempos diferentes que produzem inversões: o olhar instável entre o sonho e a vigília e o olhar petrificado da morte. Pérola transita pelas dependências do casarão, guiada pelos movimentos de abrir e fechar seus olhos, instigada pelo que deseja e consegue ver e pelo que não é capaz de ver ou não quer ver, proporcionando diferentes qualidades afetivas do olhar. O cenário noturno na maior parte das sequências abre o olhar para a perda, porque nos coloca diante de uma experiência de privação do visível. A experiência da noite desencadeia uma dialética entre o que ainda é possível ver e o que já se tornou invisível.

O gesto de abrir e fechar os olhos – tornar visível ou invisível ao olhar – é também pensado como dispositivo de composição espacial do filme, que já é apresentado no prólogo com uma sequência de vários planos em que Pérola entra no casarão e percorre todo o espaço doméstico com sucessivos atos de abrir e fechar portas e janelas. Boa parte dos enquadramentos do filme apresenta outros enquadramentos internos: frestas de cortinas (Fig. 3), algumas aberturas em mise en abyme, como janelas vistas dentro de janelas, portas a dar acesso a outras portas ou janela no fundo da sala com uma porta aberta (Fig. 4). Pelo abrir e fechar de uma porta ou de uma janela, A Misteriosa Morte de Pérola potencializa a relação necessária entre luz e sombra no cinema.

Fig. 3
Figura 3

Fig. 4
Figura 4

Portas e janelas são também entradas e saídas que desorientam a experiência de um espaço. Por onde se entra? Por onde se sai? Há uma sequência em que Pérola acaba de fechar a janela de uma sala, dá alguns passos para trás e o plano seguinte mostra a personagem saindo do interior do armário de seu quarto, na continuidade do movimento, por entre portas abertas. O percurso que o filme deseja provocar é o da vertigem labiríntica, de perturbar a noção entre dentro e fora, de trabalhar uma ambivalência entre o passar e o não passar, o aparecer e o desaparecer.

A porta como abertura para o mistério ou algo ameaçador é explorada talvez de forma mais evidente na sequência em que Pérola tranca as portas do casarão e se esconde no próprio quarto, após uma longa sequência de pesadelo. Ela se senta na cama com respiração ofegante, olha para a porta fechada do armário. A porta é aberta e o plano é invadido pela escuridão total do interior do armário, durante cinco segundos de silêncio que são interrompidos por um efeito sonoro, construído por diversas notas de cordas orquestrais, que acompanham a aparição repentina de uma figura masculina mascarada, em penumbra que envolve seu volume. Há um corte brusco para Pérola acordando subitamente, como se estivesse em um pesadelo. Ao longo do filme, os sucessivos despertares de Pérola evocam uma narrativa arquitetada como um mise en abyme, em que sonhos estão dentro de outros sonhos.

Abrir e fechar portas e janelas também modulam a dinâmica entre luz e sombra em A Misteriosa Morte de Pérola. Diferentes formas de jogo entre claro e escuro, entre branco e negro, buscam a ampliação do desaparecimento da figura humana, apenas pelo modo como a luz entra no espaço e incide sobre os corpos. Na cena em que Pérola abre pela primeira vez a janela de uma das salas do casarão (Fig. 5), o plano frontal é invadido por uma luz forte esbranquiçada que faz desaparecer os contornos da figura de Pérola, que se encontra ao centro da imagem. O uso da luz aqui neste plano proporciona o desaparecimento momentâneo e pontual do volume, da solidez, a favor do embranquecimento do quadro dentro da imagem por onde a personagem parece mergulhar. Em outra cena, Pérola entra pela primeira vez no casarão com o interior da sala imerso na escuridão (Fig. 6). A composição da sombra com a luz enfatiza a volumetria do corpo de Pérola, no entanto o contraluz não torna possível uma repartição das partes escuras e das partes claras de seu corpo que poderiam tornar visíveis seus contornos, a roupa, a cor e a textura da pele.

Fig. 5
Figura 5

Fig. 6
Figura 6

O contraluz apenas modela e esculpe o volume de Pérola, mas faz desaparecer sua fisionomia pela sobrevalorização da figura apenas como sombra. Ao colocar o espectador dentro da experiência de adentrar um casarão envolto na escuridão, A Misteriosa Morte de Pérola trata a sombra como uma qualidade própria do espaço de encenação. As internas noturnas na casa provocam a sensação de habitar a sombra, que é em si o próprio meio em que os acontecimentos se dão. O espaço do casarão é explorado com alternância entre a quase ausência de luz – a criar planos com densos tons negros e iluminação indireta – e paredes em penumbras ou sombras – com diferentes escalas e zonas entre a opacidade e a transparência. O filme é seduzido pelo movimento das imagens, por aquilo que é da natureza do próprio cinema. A própria ambientação escura do casarão produz uma ressonância com a noção de uma sala escura do cinema, onde se projetam imagens em movimento. Mundo de sombras, volumes que aparecem e desaparecem, figuras que surgem e se escondem, o ver transfigurado no perder.

Em O Sol nos Meus Olhos (2012), de Flora Dias e Juruna Mallon, a morte da mulher é tanto a questão central da narrativa, quanto o ponto de partida para a possibilidade de se conectar a outros lugares, tempos e modos de vida, por meio da travessia e do encontro. A dramaturgia alinha-se ao gênero road movie, mas há diferenças notórias no modo como articula o desejo de seguir a estrada. Por mais que a jornada do protagonista abarque diferentes cidades onde ele passa, não existe qualquer tentativa de fuga das normas sociais opressoras. A cartela inicial do filme traz a frase: “coração põe na mala. coração põe na mala. põe na mala”. Ao colocar o corpo da mulher morta na mala e seguir viagem junto com ela, o protagonista encontra uma possibilidade de despedida de quem ele amava, sem cair na imobilidade do luto e propondo uma abertura à leveza da travessia por outros territórios.

O filme começa com o plano de uma cozinha, por onde entra um homem, carregando compras. A este homem que adentra a cena, jamais será dado um nome, ao longo de todo o filme. Ele olha para fora de campo e chama por Cris. Não há resposta. Ele caminha até sair de quadro. O plano seguinte (Fig. 7) coloca em evidência a sombra do homem em contraluz, diante da porta aberta de um quarto. O homem permanece ali parado por um tempo até começar lentamente a adentrar no quarto, deixando aparecer uma mulher deitada no chão (Fig. 8). Flores vermelhas estão espalhadas ali perto. O homem permanece imóvel olhando para baixo onde jaz o corpo da mulher.

Fig. 7
Figura 7

Fig. 8
Figura 8

Se a porta aparece em A Misteriosa Morte de Pérola como limiar difícil de atravessar por sua inquietante estranheza, a porta ainda é o elemento que instaura uma abertura, uma cisão, plena de mistério, em O Sol nos Meus Olhos. Do lado de cá, a penumbra. Do lado de lá, a luz. Diante de uma porta aberta, há a relutância em atravessá-la. O homem olha para o corpo da mulher e uma ferida se abre em seu coração. A porta aberta e o encontro com o corpo da mulher morta fazem parte de uma encenação do desaparecimento: a imagem do protagonista é desde já uma silhueta em contraluz; a luz branca do sol invade a janela do quarto; não é possível ver o rosto da mulher. A sequência é envolta pelo silêncio: o homem está sozinho e o que se escuta é o som ambiente da casa. É um silêncio que não encontra equivalência na palavra, porque o acontecimento da perda é inominável.

O discurso prova-se incapaz diante do imprevisível dos acontecimentos. A relação com o mundo é o enigma em atravessar um umbral, em que se duvida se é possível continuar ou não. O corpo do homem se encurva ao ver o corpo da mulher amada no chão e declina o olhar diante de uma porta aberta. O protagonista é engolido pelo vazio, devassado pela morte da mulher. Será preciso a coragem para prosseguir sozinho e o tempo de percorrer a estrada para se recompor. Sem cair aos prantos ou gritar em desespero, o homem coloca o corpo da mulher dentro de uma mala grande, arrasta o objeto pela cozinha até fora de casa e coloca a bagagem na poltrona traseira do carro.

O gesto é brusco, violento, súbito, repentino. É uma ação que envolve um esforço corporal, com o peso de carregar uma mala e, aliado ao silêncio, parece configurar paradoxalmente a impotência do protagonista em apreender a mulher amada, mais ainda em compreender racionalmente sua morte. Colocar o corpo da mulher na mala pode apontar a princípio para uma vontade violenta de posse. No entanto, a mulher já está morta e existe aí na própria ação uma diluição concreta da posse. O que resta ao protagonista é elaborar a perda. Esconder o corpo da mulher na mala é enterrar sua imagem, mas ao mesmo tempo tal ação produz uma imagem: procura-se dar forma ao que resta, trabalhar o desaparecimento.

A mala permanece dentro do carro, por dias e noites. Mas a passagem do tempo não conduz à certeza de que ali, no interior da bagagem, há um cadáver em processo de decomposição ou putrefação. Esta dedução por uma interpretação realista dos acontecimentos não é colocada como um problema ao longo da narrativa do filme. A mala não é o corpo da mulher. Ela é o túmulo. Ela é volume e vazio. É imagem da perda. Como túmulo, a imagem da mala é pontuada no filme, seja em um plano de detalhe (Fig. 9), seja em meio a outros objetos de uma cena (Fig. 10).

Fig. 9
Figura 9

Fig. 10
Figura 10

A presença pontual da mala em O Sol nos Meus Olhos forja sempre um prenúncio das sequências em que o espectro de Cris emerge. A figura fantasmática é a aparição de uma mulher bela, de tez saudável, com olhar sereno e voz mansa. Não é uma espectralidade evanescente, esmaecida ou borrada; pouco corresponde ao imaginário tradicional dos fantasmas construídos pelo cinema. A manifestação idealizada do espectro da mulher morta aponta algo da subjetividade do protagonista, a partir de uma imagem de fascínio, de preservação da beleza, de bálsamo para a angústia, de fuga em relação ao olhar cotidiano.

Na primeira cena em que o fantasma de Cris aparece, já é de noite. No quarto do hotel, o protagonista se senta no chão, de frente para a cama vazia. A mala está logo ali, no outro canto. A porta fechada ocupa o espaço da parede entre o homem e a mala. A porta novamente aparece aqui como limiar de inquietante estranheza; ela é o entre, quando ver é perder. Quando o homem já está em sono profundo, o fantasma da mulher se manifesta, posiciona-se nas costas dele e o abraça (Fig. 11). Não é possível ver a face dela, que fica encoberta pelo rosto dele. Os dois repousam juntos. Eles coabitam o mesmo plano.

Fig. 11
Figura 11

Na sequência seguinte, o silêncio da noite cede lugar ao rumor da manhã. Rastros de paisagem unem-se a uma mistura de sons, entre cantos de pássaros, gritos de criança e ruídos de carros passando. Um pássaro repousa no galho de uma árvore. Parece ser o plano ponto de vista de Cris, que olha para fora de campo no plano seguinte (Fig. 12). É a segunda vez que o fantasma de Cris aparece no filme. Ela está sentada no centro do quadro, em curioso estado de imobilidade, como se fosse aquele pássaro, ou tão estática quanto as duas árvores que a cercam. Ela olha para o canto abaixo. No contracampo (Fig. 13), o protagonista está dormindo, deitado no tronco de outra árvore. Ele abre os olhos lentamente, levanta-se e sai do parque.

Fig. 12
Figura 12

Fig. 13
Figura 13

Nas duas sequências, o personagem está dormindo quando o fantasma de Cris aparece. Ao fechar os olhos, é possível ver novamente a mulher amada. O entorpecimento do corpo pelo adormecer leva à aparição fantasmática de Cris. Quanto tempo o protagonista dormiu? O espectro de Cris invade os sonhos dele? Por que ela desaparece quando ele acorda? Não existe despertar sem sonho. Estar de olhos abertos não é suficiente para convocar a imagem da perda, mas é no despertar que o sonho é retrabalhado sobre os vestígios, os rastros no visível, sob o risco deles desaparecerem. O fantasma de Cris terá sua última aparição em um momento de vigília do protagonista. O homem acende uma fogueira no meio da escuridão. Seu corpo é iluminado pelas chamas do fogo, que ele observa com olhos sonolentos. Um barulho faz com que ele vire o rosto para ver. O fantasma de Cris se aproxima com passos lentos, até se ajoelhar diante dele (Fig. 14). Os dois passam alguns segundos se observando, em silêncio.

Fig. 14
Figura 14

Nos planos mais fechados nos rostos dele e de Cris, as chamas da fogueira permanecem em evidência, como se os corpos estivessem envoltos pelo fogo. As chamas estão desfocadas, mas parecem emoldurar o enquadramento. O fantasma de Cris é potencializado pela verticalidade das chamas, que despertam imagens a burlar a percepção do olhar. É a imagem da mulher amada que fala: “Você sabe que, quando a gente se desloca e deixa as coisas pra trás, as coisas vêm atrás da gente. E aí esse lugar tá sempre onde a gente nunca sabe”. De qual deslocamento, ela está falando? Da passagem da vida para a morte? Da jornada do companheiro ao pôr o corpo em trânsito? Colocar-se em travessia mediante a viagem por territórios desconhecidos não desfaz a imagem da mulher amada, quando o visível é tocado pela perda. O que se tenta é suturar os rasgos, amenizar a angústia, preencher o vazio. Ao mesmo tempo em que se busca a proximidade com as coisas visíveis, os desaparecimentos e ausências produzem as distâncias que perturbam o olhar e o envolvem no mistério.

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