Por Ranieri Brandão
A prova cabal do movimento e do modo de olhar no cinema de Max Ophüls é aquele plano-sequência que abre A Ronda. Mais do que um virtuosismo técnico, ou mais do que uma assinatura (o prazer do movimento em detrimento ao da montagem), o plano tem que preencher o seu interior com um personagem que controla a ficção, e, logo, o próprio plano, que só acabará quando ele quiser, quando ele acionar a história do porvir e uma intercalação de discursos e situações que exemplificam o desejo (incontrolável) e a traição (passo físico seguinte ao desejo).
Esse é o tema de um controle, personificado nesse sujeito, ou o tema de uma posição de olhar que é particularmente indireta-livre que está voltada de frente para as coisas do filme, sem especificar nos outros personagens, no entanto, todo o seu poder de unir ou desunir casais e discursos. A esse personagem, se for mesmo possível — já que ali é sua presença quem constrói e acompanha a superfície visível da diegese — parece ser concedido um poder gigantesco de se partir (para ser muitos: um oficial do exército, um garçom, um operador de brinquedo de parque de diversões, daí os muitos discursos, os muitos “outros” que essa figura interpreta, sem nunca deixar de ser um condutor de tramas), de não conseguir fechar os olhos, e de só cortar fora do núcleo de cenas de desejo aquilo que a ousadia — quase extrapolando, ou já extrapolada — não tem consciência do perigo que existe se certas imagens tomarem forma, ali bem no limite do que a moral não deixa ver: a nudez de um corpo, a naturalidade (explícita!) do próprio sexo. Em todo caso, o desejo está lá, e essa nudez, em A Ronda, é uma nudez mental, que ninguém pode interditar a (re)constituição (de imagens eróticas, de ligações entre os “causos”) ao pensamento.
É a ideia principal da técnica de Ophüls, a de enxergar bem todas as coisas de um determinado espaço, técnica do olhar que agora se materializa literalmente num personagem (forma tão visível quanto uma câmera conforme Ophüls a entende) quando entra em contato com a onisciência e a onipresença da figura de Anton Walbrook, esse falso protagonista-condutor que nomeia cada uma das micro-histórias co-relacionadas que nos conta, que realiza percursos para que se chegue ao discurso das figuras que ele acompanha, imagem sem tempo, sem preenchimento algum, forma volátil, mestre de marionetes, que informa a época do filme (“1900”), passeia pelos cenários de estúdio (que ele reconhece e identifica como tais) mas que de todo não parece fazer parte dela. Finalmente, Ophüls filma alguém que, como ele mesmo, olha ininterruptamente e que é obrigado, vez ou outra, a impedir, encobrir com cortes para o fade out ou para cenas deslocadas, o olhar do espectador.
Walbrook antes interpreta, coisa moderníssima, sobretudo as funções de uma câmera, da montagem, da música, das falas, das intrusões, das tomadas retóricas (os eventos que acontecem sem nada a impedi-los e que se resumem, como comentário, num olhar cômico-irônico de Walboork para a câmera, como que lamentando o destino das pessoas de quem conhece as histórias), sujeito indefinido justo por estar ali como pedra fundamental que brinca de mostrar e esconder as imagens amadas e odiadas pelos censores. Ele é um mecanismo, nada mais. Uma ferramenta tal qual aquela que ele usa para fazer girar o carrossel, que só pode ser o objeto que mais se aproxima materialmente de um conceito visível de “vida”, mesmo conceito de “acaso” e de “ordinariedade” que Ophüls filma aqui. Em maior ou menor escala, todas as imagens “proibidas” de A Ronda escapam ao seu próprio controle e se fixam numa tela projetada na mente, a partir da sensualidade, da frontalidade com a qual Ophüls filma a sedução, o tesão incontrolável residindo nos corpos das atrizes, corpos isolados nessas quase-histórias-completas, mas finitas em seus funcionamentos e aventuras – por isso, a extrema facilidade da captura.
Afinal, o que A Ronda é de fato, quando os movimentos e direções que ele aponta são todos baseados nessa sequência de abertura composta por um sujeito que antes de ser humano é criador e personagem sobrenatural e indomável, e que se envolve nos romances e fatias de aventuras apenas para estar presente, zombeteiro, controlador do fluxo daquilo que se narra (mas não do que acontece como centro emotivo dessa narrativa), ciente de tudo e sem nada poder fazer, já que, como ele mesmo diz, está ali apenas para nos apresentar aos nossos desejos de espectador? Qual a sua função técnica de ferramenta, a não ser encontrar a preciosa frase do poeta que diz muito sobre o próprio estado de coisas de A Ronda, estado-de-encenação e modus operandi dessa sucessão de eventos privados, “o drama é o eterno matrimônio entre o frenesi e a organização”? Organizar o frenesi, as pulsões do sexo, da traição, aquelas que são emitidas pelo objeto do desejo (objetos do desejo: Danielle Darrieux, Simone Signoret, Simone Simon, Isa Miranda), organizar tudo num filme, num único ritmo temático. Organizar isolando, desregulando (e completando no off de nossa consciência) as partes “desconexas” dos discursos e das traições dos personagens entre si.
Nisso, o filme de Ophüls parece ser uma série quase interminável de “ous”: A Ronda ou a ficção do controle; A Ronda ou o controle sobre a ficção; A Ronda ou a coleção de pequenas frações de histórias que se dobram oniricamente sobre si; A Ronda ou a relação completa e contínua da pequena lista de encontros furtivos e irredutivelmente clandestinos (e o que os personagens de Ophüls sempre parecem temer é uma clandestinidade ainda maior do que aquela em que às vezes estão inseridos); A Ronda ou a entrega da ficção exatamente como tal, e não como réplica do “Real”, posto que se “sentimos” a existência da câmera de Ophüls, e se esse é o princípio de seu cinema, esse seu “não compreender a invisibilidade”, não pode ser nada escandaloso cruzarmos com os olhos de Walbrook depositados sobre nós, aqui e ali, atravessando a ficção da lente e da linguagem “clássica”. A Ronda ou como ser modernamente narrativo, como contar antes de mais nada um tema, uma sugestão, vários “crimes” da carne.
Não há nada mais a atestar, então, a não ser que a condensação e concentração de forças de A Ronda passam por essa ciência de que a matéria do filme é observada por um olhar que está atento a tudo, que pontua tudo, que não é nada significante (a não ser nesse seu papel misterioso, felliniano, o de estar inserido num mundo sem ser alguém de fato na diegese que ele mesmo cria, pois ele mesmo não pode deixar de ser quem é, fora dela, dentro de uma outra, sua) e que simplesmente não pode mover as coisas em seu funcionamento interior, sentimental, limitando-se apenas a acionar a próxima história, os próximos personagens que virão ao desfile proporcionado pela projeção e pela tela. É exatamente como se o filme fosse uma peça de teatro a ser apresentada, a ser tomada de assalto pelo público — mais uma vez, esse vaudeville ophülsiano, ali nas poltronas do teatro vazio que são filmadas na abertura e que, sabemos, devem ser preenchidas por nós — que só tem a necessidade de se alimentar com dramas alheios.
A função primordial de Walbrook é a mesma da câmera de Ophüls, mais do que a das outras ferramentas do cinema que cedem seu poder a ele: dar a entender um espaço, apresentá-lo a nós, convidar-nos à contemplação de pequenos eventos que se conectam apenas em nossa própria montagem e continuidade (nada é descoberto pelos traídos), acompanhar os personagens num nível de cognição profundo, mas apenas como um carismático narrador sem identidade ou com uma identidade misteriosa (como aquele de E la nave va, porém nada frágil e infinitamente mais perspicaz), um transeunte qualquer que se fixa nos detalhes cotidianos transformados em tableaux e deles extrair o exato local da vida e da arte (ou das tentativas do cenário em simular uma rua), do espaço certo onde as duas se unem e se tornam uma magia indefinida, porque ambas se conhecem — daí o breve plano de Walbrook interrompendo uma cena de sexo segurando uma película e cortando-a com uma tesoura, dizendo que “isso” é “a censura” — não deve haver segredo algum entre um plano que prossegue e um plano que é destruído, proibido. Tudo é extremamente claro.
Porque não há ninguém como Ophüls no “período clássico”, afinal. Alguém que filme tão frontalmente o desejo e o prazer direcionados para objetos que não são nada “legais” (legalizados) no momento em que emanam dos corpos conforme ele os filma, naquele fim de era do romantismo. A Ronda é um filme que só existe enquanto houver essa fagulha de desejo — dos corpos entre os corpos, da narrativa pelo simples ato de narrar e de interromper movimentos e tesões, da organização que se equilibra com a instabilidade do frenesi para registrar e inscrever o drama; é um filme que, em primeira e última instância, vive das coisas que pulsam e que não se completam (mas que se bastam) e do desejo que vale por si, só por ser o desejo por alguma coisa. Portanto, não seria Walbrook, aqui, a própria encarnação desse desejo, desse olhar de cinema, vontade tão forte que faz ele mesmo, ator transformado em personagem, tornar-se instrumento de comprovação de linguagem e de existência física dos prazeres e dos amores de cinema segundo Max Ophüls?
Filmes citados
A Ronda [La ronde; França, 1950], de Max Ophüls. 97 min.
E la nave va [idem; Itália/França, 1983], de Federico Fellini. 132 min.