Por Pedro Lovallo
Alguns artistas são acusados de jamais abandonarem a sua zona de conforto, insistindo nos mesmos temas e padrões estéticos. Que Hong Sang-soo seja visto por muitos como um diretor de filmes iguais não é surpresa, e isso certamente diz muito sobre o seu trabalho. Esse reducionismo, porém, deixa de captar o que o torna tão único: o coreano é um cineasta de acúmulos: seja de elementos retomados e ressignificados ao longo de sua filmografia, seja a partir de gestos, frases e imagens que rimam dentro de uma mesma obra, obedecendo a um sistema muito particular.
Seus filmes recorrem a estruturas dípticas e trípticas, reconstituem eventos, os embaralham cronologicamente como um bolo de cartas. No universo do diretor, os elementos se acumulam num grande filme de várias horas, mas cada obra é também um mundo fechado em si mesmo, onde uma ação aparentemente banal pode ser recontextualizada mais à frente e situações idênticas podem ser reencenadas com personagens diferentes ou modificações sutis. Nesse universo as coincidências de fato acontecem e o cotidiano pode se converter em realismo fantástico: contradições poderiam ser explicadas por uma viagem no tempo, nunca mostrada ou sequer sugerida (como o final de A Câmera de Claire, 2017); encontros e desencontros parecem orquestrados por uma força superior (o cineasta, certamente) e figuras secundárias e sem diálogos podem ganhar uma importância quase mística (como o limpador de vidros no quarto de hotel em Na Praia à Noite Sozinha, 2017). Não se limitando a contar histórias, Hong mobiliza o mecanismo narrativo em prol de um jogo de reconfigurações. Embora o sul-coreano seja frequentemente comparado a outros diretores de tendência verborrágica, talvez seja mais interessante propor uma ligação mais improvável: entre Hong e David Lynch.
A lógica do jogo do diretor não necessita de explicações. Hong não está interessado em refletir sobre a metafísica que move as engrenagens de seus filmes, mas em assumi-la quase ontologicamente enquanto agente catalisador de sua encenação. Sob esse aspecto, suas repetições assemelham-se às estruturas lynchianas de obras como Cidade dos Sonhos (2001) ou Império dos Sonhos (2006). Hong não é propriamente um cineasta do onírico, mas a forma como ressignifica a banalidade cotidiana tem um quê de sonho; ou pelo menos busca captar a excentricidade inerente ao dispositivo de narração. Tanto ele quanto Lynch se aproveitam da força motriz das estruturas ficcionais: o sul-coreano embaralha a trama para operar a partir dessa confusão, enquanto o criador de Twin Peaks busca no embate entre sonho e realidade a criação de sua atmosfera. Não se trata, em nenhum dos casos, de construir um quebra-cabeças a ser desvendado segundo uma chave narrativa inequívoca; mas de estabelecer uma organização que possibilite o funcionamento desses universos. A trama emaranhada não é um truque simplista pedindo para ser desmascarado, mas a lógica possibilitadora da livre encenação das ideias de ambos os diretores.
É um universo que se expande a cada novo trabalho, habitado por pessoas bebendo, conversando e transando – e no qual muitos dizem não enxergar nada além de trivialidades, como se a vida não se resumisse em grande parte a isso. É um cinema que se dedica às pequenas coisas – conversas despretensiosas, flertes desengonçados e mesmo incômodos, o constrangimento do silêncio que impera no meio do diálogo – sem exaltá-las, mas trazendo-as ao primeiro plano, buscando a maneira ideal de representar o cotidiano em toda a sua complexidade banal.
Seus longos planos funcionam como ilhas, separados por elipses. Cada cena possui autonomia, sem deixar de se comunicar, no entanto, com o restante do filme. A unidade (filmografia) é composta por unidades (filmes) formadas por outras unidades (planos) e cada qual constitui um universo. Quando os personagens desandam a falar, Hong não recorre ao plano/contraplano, mas a uma câmera que desbrava o ambiente, buscando com movimentos laterais ou zooms a expressão dos atores ou algum objeto cênico. A câmera pode flutuar pelo local por minutos a fio, observando a resolução de um conflito, mas em ritmo variável: de forma deliberada e detalhista, captando diversas nuances da cena (como no diálogo final de Na Praia à Noite Sozinha); ou de forma mais dinâmica, respondendo a momentos de maior intensidade (como na discussão entre patrão, funcionária e amante em O Dia Depois, 2017). Após o próximo corte, outros takes podem ter menor duração: uma mudança de ambiente, um personagem caminhando, até que outro plano venha para ficar, encontrando gradualmente as próprias possibilidades, captando novos detalhes. Um mesmo enquadramento pode adquirir novos significados – a exemplo de O Dia Em Que Ele Chegar (2011), que explora variações das mesmas situações, alternando personagens e diálogos, ressaltando a diferença entre um momento e outro.
Hong opera de modo aparentemente simples, é um virtuoso que evita chamar atenção para si; o plano-sequência é sua identidade, não um movimento autocongratulatório e gratuito. Não por acaso, gestos mínimos tornam-se fundamentais e vem daí a importância da presença física e da expressão corporal de seus atores. É o que torna Kim Min-hee uma atriz perfeita para seus filmes, capaz de tornar pequenos momentos de espontaneidade (um sutil cerrar de olhos, balançar a cabeça levemente para trás ao sorrir constrangida, os gestos embriagados em Certo Agora, Errado Antes, 2015) pequenos milagres a serem captados pela câmera, eternizados em sua pura graciosidade. O cinema de Hong Sang-soo é uma máquina de assimilar gestos e nuances, à espera não apenas da consumação de sua vigorosa encenação, mas também da espontaneidade de seus intérpretes.
Discussões sobre a morte do cinema inevitavelmente desembocam na reflexão sobre o papel do autor. Seja na iconoclastia de cineastas que encontram sua forma de trabalhar na desconstrução formal e narrativa, seja na revisita a elementos clássicos em um projeto estético calcado na reverência a um cinema de outrora ou mesmo em obras que se apoiem na relação digital x película; não parece existir uma categoria que abarque completamente um cineasta de estilo e procedimentos tão particulares como os de Hong Sang-soo.
O sul-coreano encontrou em elementos básicos da linguagem cinematográfica – o plano-sequência ou o zoom, por exemplo – sua maneira de construir uma marca autoral facilmente reconhecível sem recorrer a uma hiperestilização agressiva. Enquanto se beneficia das facilidades do digital, a máquina cosmológica que é o cinema de Hong Sang-soo busca na praticidade de certos recursos tradicionais uma maneira de reinventar estruturas clássicas e, portanto, construir sua própria linguagem. Mesmo simples escolhas estéticas podem ser vistas sob o viés da desconstrução formal – pensemos em como os movimentos de câmera e zooms substituem o corte –, reafirmando seu cinema como uma arte de reorganização de elementos em prol da construção de uma lógica associativa muito cara à sua cosmologia particular.
Enquanto alguns enxergam apenas um cineasta em sua zona de conforto, Hong Sang-soo continua a reinventar sua própria maneira de dar forma ao cotidiano. E continuamos acompanhando esse fluxo de acúmulos com a certeza de encontrar novas velhas sensações a cada filme.