Por Gabriel Papaléo
Testemunhando o pictórico no fim do mundo de uma natureza que vive e morre sob os próprios termos. Os vestígios e registros daquilo que acaba e vive em igual medida. Assume o ponto de vista totalmente difuso de sugerir olhares múltiplos de uma coruja, de um cavalo abandonado por quem nunca vemos, das sombras que sobem as montanhas, de um fotógrafo privilegiado diante da terra alienígena que está diante dos nossos olhos. Salta dessas diferentes percepções para afirmar uma impossibilidade de assimilação do todo, de momentos que deixam lacunas, de preenchimentos de intuição mais fortes que informações visuais. O digital como ferramenta impressionista de fragmentação e reorganização da imagem, texturas diversas que se confundem para com o zoom preciso esclarecer. Constroi seu mundo através de neblinas e reflexos, de um som de extracampo que dá conta de todas as transformações simultâneas que remetem tanto a uma origem da Terra como de fragmentos de um reinício. Das ficções-científicas especulativas mais conscientes do potencial apavorante do lugar que localiza sua narrativa.
Enquanto visão de mundo cinematográfico, um manifesto pelo potencial destruidor do digital. As chamas da floresta ou os raios no céu são consequências naturais do perigo sentido ao longo da narrativa – surpreendentemente modulada para um conceito aparentemente difuso – mas são elementos de violência imagética menos incômodos que a presença do ruído, do grão digital que se move lentamente, que forma abstrações através de paisagens deformadas lentamente. O poder do tempo em destruir uma imagem para renovar o mundo que secretamente observamos. Sleep has her House, com a ambição de imersão num estado de transe, vive num curioso e pouco habitado lugar de incerteza sobre a projeção cinematográfica nos tempos de transformação e morte do cinema: tem suas fundações estéticas nos signos de uma cinema tanto de horror quanto de ficção-científica de um assombro com o desconhecido que se impõe bem dentro da experiência da tela escura, com a projeção em tela enorme; mas constroi o pensamento através justamente de uma questão imaterial da imagem, da maleabilidade do quadro e da textura, de um cinema essencialmente digital que não enxerga na superfície da película uma âncora de presença física no mundo. Sua exibição parece enxergar como irrevogáveis tanto as ferramentas de exibição digital num computador quanto na experiência da tela escura tão sagradas em cinematografias como de Tacida Dean, Peter Tscherkassky e Paul Thomas Anderson.
Uma progressão notável na filmografia do Barley, como se culminasse diversas ideias dos mundos criados e destruídos pelo galês nos seus filmes anteriores. Alia com harmonia sua vocação para olhar impressionista que vira expressionista de paisagens com seus curtas mais focados na abstração de texturas que o aproximava a Brakhage, como o Irresolute (2015). Aqui, o pictórico das texturas se configura dentro de uma ação de horror de espaço como mais um elemento cênico, seja na figura de um céu alaranjado que deixa o mundo respirar por um momento, seja na cicatriz deixada no ambiente pela correnteza implacável numa das fusões ambiciosas do filme. A beleza e perigo do natural, ficção-científica e horror como visões complementares de mundo, as duas faces da curiosidade, tentando adentrar um lugar não pensado para a sua presença, que progride lentamente até o fim apocalíptico que parece que esteve ali desde o princípio.
Foi uma das sessões mais inacreditáveis da minha vida. Sei que acaba muito confessional nisso daqui que vejo como diário emocional do que tive com o filme, mas sinceramente saí catatônico. Não sei se conseguirei ver novamente numa tela grande, mas tenho certeza que não me esquecerei do que tivemos ali.