Por Lara Ovídio
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Os desktop movies se popularizaram nos anos 2010 junto com a internet. Já as ferramentas de captura de tela estão disponíveis desde 1960, surgiram junto com os primeiros computadores. Os screenshots são fotografias instantâneas de tela. Mas entraram para o cotidiano como prints. Pedimos prints o tempo todo e não paramos de printar.
Os prints são imagens bidimensionais que quase sempre trazem em si elementos do app em que foram capturadas: abas, janelas, barras, botões. Possuem, como toda imagem, uma capacidade narrativa que independe da resolução, nitidez e do contexto original. Ao mesmo tempo, são fragmentos das vidas que vivemos on-line, imagens de imagens que se acumulam vertiginosamente nos dispositivos que acessam as redes. Fotos e vídeos aleatórios, conversas, lembretes, recibos, memes, figurinhas de WhatsApp, etc, etc, etc.
Mas são as capturas dos movimentos que acontecem nas telas que permitem o surgimento de filmes que se passam inteiramente no ecrã – os desktop movies. Ao invés de se parecerem com o que foi, se parecem ao que está sendo. Janelas de janelas que se combinam uma atrás da outra, uma sobre a outra, uma ao lado da outra. Imagens heterogêneas que se acumulam, se repetem, se reproduzem, se multiplicam, se excedem, se chocam e constituem sentidos diversos. Elementos divergentes que se combinam em uma sequência de disparates que já não produz qualquer estranhamento, porque assim também se convivem imagens e textos cotidianamente nas telas dos computadores pessoais.
A estética cotidiana dos excessos e da heterogeneidade pode ser exagerada. Em Grosse Fatigue (2013), de Camille Henrot, esqueletos de peixes, aves empalhadas e arquivistas do Museu Smithsonian Nacional de História Natural se misturam a vídeos de cientistas no youtube, janelas do google, imagens de livros e tentam reconstituir a história do universo pela sobreabundância e pela confusão, com um ritmo frenético e uma voz em off que guia o espectador no meio do caos. Em Noah (2013), de Patrick Cedeberg, o fim de relacionamento abusivo se dá entre conversas de skype, invasão de facebook, sites de pornografia e troca de músicas. Em Proxy Reverso (2014), de Guilherme Peters e Roberto Winter, dois jovens tentam encontrar documentos que possam provar que as eleições presidenciais do Brasil em 2014 foram fraudadas, enquanto fofocam no Skype, trocam vídeos do youtube, discutem teorias da conspiração e baixam filmes piratas. Em todos esses filmes muitas coisas acontecem enquanto a narrativa avança e as distrações são parte essencial do ecossistema de imagens.
Vivemos uma parte enorme das nossas vidas conectados. Os desktop movies se ocupam desses acontecimentos que são mediados pelas telas e o fato de que ainda que tentássemos fugir, não haveria para onde. O mundo off-line incorporou as telas, as imagens, a estética e a lógica das redes, desejando parecer com o mundo on-line e já parecendo.
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# O recurso da captura de tela funciona como uma câmera que fotografa para dentro de si, mas nada revela sobre si mesma. # # A superfície e a profundidade se encontram numa tela só. # # # de deep, só web.
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Ainda que o cinema experimental tenha incorporado os bastidores há décadas – [Funeral de Rosas (1969), de Toshio Matsumoto], [Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho] –, nem sempre a parafernalha estava em cena. Esse recurso lembrava ao espectador absolutamente imerso na projeção, de repente, que ele estava diante de uma imagem. Nos filmes ficcionais, era também uma maneira de tensionar os limites entre os elementos ficcionais e documentais que construíam a narrativa.
Já nos desktop movies, a parafernalha deixa de ser hard e se revela soft(ware), é a própria estética digital. A mesa de trabalho, aplicativo, google, maps, chrome, e-mail, whatsapp, facebook, twitter, zoom, meets, avisos, pop ups, abas, youtube, pastas, hd, e, sobretudo, o m0u$e. O mouse conduz o espectador em meio a narrativa, é a manifestação do personagem e às vezes do narrador. O mouse abre programas, seleciona links, destaca textos. E mesmo quando não vemos indícios de tela, suas especificidades estéticas nos lembram que ela continua ali. Por isso, o dispositivo é parte essencial e incontornável destas narrativas.
Se por um lado o espectador não esquece a tela, pode esquecer daquilo que separa seu íntimo desktop, do que nele se vê: um filme. (Por isso, me assusto repetidas vezes ao ver clicks em minha tela que não são meus). Nesse momento, de total correspondência, não nos projetamos no personagem ou no narrador, nos confundimos completamente com ele.
Talvez por isso Chloé Galibert-Laîné não disfarçou sua alegria ao lançar seu filme Forensickness em meio à pandemia. Muitas pessoas assistiriam o filme em seus computadores pessoais, uma tela, em quase tudo idêntica àquela em que o filme foi rodado.
De forma que o dispositivo de visualização, poderia se parecer exatamente ao dispositivo de captura.
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O original e o apropriado quando vistos em uma mesma mesa de trabalho parecem por vezes idênticos. É difícil encontrar algum elemento capaz de diferenciar as imagens filmadas por Kevin B. Lee para o Transformers: the Premake, daquelas que os – outros – fãns de Transformers capturaram com seus próprios celulares e postaram no Youtube. Em tudo coincidem: ponto de vista, qualidade, estética, amadorismo. Ainda assim, Lee decide marcar uma – suposta – diferença entre original e apropriado – mostrando a pasta “My footage”, em que guarda os vídeos que ele mesmo gravou, antes de “dar o play”. Afirmando nesse gesto, a indistinção entre umas e outras.
Camille Henrot, em Grosse Fatigue, adota uma estratégia diferente. Captura suas próprias imagens a partir do arquivo do Smithsonian Museum e trabalha para reduzir as diferenças entre as imagens que ela produz e aquelas que usou da internet. Tenta aproximar a imagem autoral da apropriada, se aproveitando da capacidade dos desktops igualarem uma à outra. As imagens capturadas em alta resolução, brilhantes, sedutoras, fascinantes, são dissolvidas no desktop, no excesso, no acúmulo, na velocidade e na proximidade com as imagens apropriadas, descarregadas, sem nitidez ou resolução. (Ou pelo menos assim pareciam na cópia pirata do filme).
[…] é sobre circulação em enxame, dispersão digital, temporalidades fracturadas e flexíveis.
Hito Steyerl
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No auge do distanciamento social provocado pela pandemia da COVID-19, a vida passou a se parecer com um desktop movie. Muito do que acontecia, acontecia na tela. (Nunca as mortes, nem as contaminações). Mesmo a população que não teve direito a quarentena, mudou sua relação com as redes e os dispositivos de acesso a elas. Aulas, cursos, palestra, festas, textos, notícias, imagens, pornografia, conversas aleatórias e aplicativos diversos dividiam o mesmo espaço e ocupavam muito tempo. Ainda que os primeiros filmes de captura de tela sejam muito anteriores à pandemia, nesse período sua estética se difundiu através dos recorrentes compartilhamentos de telas.
Mais de dois anos depois, a pandemia não acabou e a vida segue híbrida. Uma série de eventos se mantém on-line e on-line devem continuar. De repente, nos damos conta que o mundo como existia antes, já não existe mais. Assim como aconteceu com outras tecnologias, não dominamos as telas, ao contrário, elas sim é que nos dominaram. Apesar de um cansaço difuso do excesso de conexão e telas, não temos escolhas. Paradoxalmente (ou obviamente) em meio a essa exaustão, os filmes de captura de tela avançam rumo ao mainstream. Talvez um indicativo de que não vemos escapatória para o convívio full time com as telas e as redes, talvez apenas indício de que algumas histórias não podem prescindir destes dispositivos como parte da narrativa.
Ch4ts
Esse texto recupera questões levantadas por Anselm Jappe, Jacques Aumont, Jacques Rancière, Hito Steyerl, Kevin B. Lee, Vilém Flusser e Dora Longa Bahia. Os filmes e vídeos que mencionei estão linkados no próprio texto. Agradeço a Multiplot! pelo convite, a Bruno Ferreira e a Taiani Mendes pelos comentários e sugestões. Se quiser saber mais, recomendo as seguintes leituras: AUMONT, Jaques… et al. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995. JAPPE, Anselm. Guy Debord. Editora Vozes: Petrópolis: 1999. RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. STEYERL, Hito. Em defesa das imagens pobres. Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Faculdade de Belas Artes. Universidade do Porto, s/a. Disponível em: https://alix.fba.up.pt/em-defesa-das-imagens-pobres acesso em: 13 set. 2021. ______. Capítulo 11: A internet está morta? In: Hito Steyerl: Três capítulos de Arte “Duty Free”: Arte na Era da Guerra Civil Planetária. Tradução: Carolina Eiras Pinto. ARS, ano 18, n. 3, p. 291 a 308, 2018.