Por Michel Gutwilen
Segundo Walter Benjamin, o flâneur é aquele que exerce a percepção distraída, ou seja, quem percebe o mundo sem tomar o tempo necessário para olhá-lo. Por sua vez, o oposto dessa atitude seria a contemplação – por sua vez, a dedicação da percepção dos sentidos no tempo. Discutido pelo autor em 1935, a aplicabilidade inicial do flâneur se referia a quem se perdia pelas ruas, passando o olho por carros, pedestres e prédios, mas sem se fixar em nenhum deles. O flâneur está sempre em movimento e reconfigurando suas percepções, conforme apreende novas imagens. Contudo, com a passagem do tempo e a transformação dos meios tecnológicos, as formas do olhar também mudaram. Nos anos 60, já se começava a dizer que o flâneur não estava mais nas ruas, mas sim nos sofás, se tornando o “zapeador de televisão”. Atualmente, fala-se no flâneur digital, aquele que navega no espaço virtual dos celulares e computadores, interagindo com suas redes de informações infinitas.
Como o flâneur é alguém que absorve naturalmente diversas imagens sob a percepção distraída, Benjamin defende que ele pode adquirir novos hábitos de maneira inconsciente. Por isso, o autor acredita que o Cinema pode ser a arte ideal para moldar novos costumes, uma vez que seus espectadores estão distraídos com o filme em si. Em resumo, essa é a ideia apresentada por “Flânerie 2.0”, curta ensaístico da pesquisadora e diretora francesa Chloé Galibert-Laîné. Ao versar sobre o flâneur digital, Chloé já adiantava um tema fundamental de sua filmografia, que perpassa pelo formato de desktop movie.
Uma peculiaridade do espaço cybernético é a sua própria contradição interna. Por um lado, nunca se teve tantas informações (imagens, vídeos, textos, dados…) à disposição do usuário. Por outro lado, esse acúmulo significa uma própria negação da percepção, já que o ritmo com que as informações chegam é sempre maior do que a velocidade que o ser humano consegue absorver. Ou seja, com a necessidade de dividir a atenção entre as diversas sobreposições que se dão no campo do olhar, olha-se tudo, mas nada se enxerga. Consciente dessa contradição do cyberespaço, Chloé realiza em seus filmes uma espécie de curto-circuito informacional: nunca há apenas uma informação em tela, mas excessivos elementos que vão interagindo simultaneamente. Abas de internet são postas lado a lado, um vídeo aparece ao lado de um texto ou de outro vídeo, uma narração surge em cima de um texto, e desse jeito continuam os diversos choques. O enquadramento do plano é totalmente saturado, impossibilitando a distinção entre o que é informação principal e secundária. Captando fragmentos do todo, o espectador de um desktop movie é engolido pelo próprio sistema, à medida que percebe informações sem conseguir se fixar em nenhuma delas – tal como um flâneur.
Se não há como a percepção humana resistir contra o ritmo imposto pela máquina, Chloé mostra saber hackear as regras do jogo e faz da limitação humana a força de seus filmes, seguindo o fluxo das ondas informacionais e mantendo o movimento. Ao assumir a característica de uma flâneur, o próprio ato de vagar pelos espaços digitais se torna mais importante do que o destino de suas investigações. Conforme Bergson e sua ideia sobre o Novo, a essência de uma coisa sempre aparece no curso de seu desenvolvimento. E assim se dão as buscas de Chloé: passeando entre diferentes abas, surfando entre links, se permitindo errar no caminho, curtindo o labirinto que é a internet, e até caindo em digressões que pouco têm a ver com sua pesquisa inicial. Talvez seja por isso que o tema conspiratório seja tão caro à sua filmografia, já que o próprio impulso investigativo é uma forma de brincar com essa ideia de se manter em movimento, seguindo pistas e se perdendo por elas, criando novas direções sem saber o destino, e cada vez mais entrando numa espiral sem fim. Como mostra Forensickness, a internet é um convite à paranoia; o usuário que nunca se deixou ser contagiado por uma pulsão conspiratória, que atire a primeira pedra.
Por mais que no cinema “narrativo” o espectador normalmente seja conduzido a criar uma identificação com a/o protagonista, o desktop movie acaba por evidenciar ainda mais diretamente essa confusão entre ambos. Ao compartilhar seu processo de pesquisa com transparência, ao invés de eclipsá-los, Chloé não se coloca numa posição de vantagem em relação a quem vê seu filme, mas faz com que se sinta em um processo de aprendizado conjunto, gerando um sentimento de recompensa e confiança mútua. São nessas variáveis que o cinema de Chloé Galibert-Laîné se mostra uma verdadeira pedagogia da imagem.
Com uma estrutura baseada em uma relação tríplice, encontra-se sempre em seu Cinema um padrão de três camadas. Há uma imagem pré-existente, a da investigação de Chloé sobre ela e a interpretação do espectador, que é tanto sobre a imagem quanto sobre a investigação. Filiando o espectador ao seu olhar em um primeiro momento, a realizadora faz questão de gerar uma quebra posterior, botando em dúvida sua própria figura enquanto narradora confiável e ativando uma paranoia naquele que assiste. Se aparentemente isso contradiz a ideia de “pedagogia” no Cinema de Chloé, na verdade, essa sua atitude só reforça como ela busca ensinar o seu “aluno” a desconfiar daquilo que ele recebe, exigindo que se saia de um estado passivo para uma percepção ativa.
Em Watching the Pain of Others, que analisa as imagens do filme Pain of Others (de Penny Lane), a diretora inicialmente leva o público em uma direção, se perdendo no seu flânerie, apenas para romper com ele no meio. Inserindo uma informação que reconfigura tudo que fora apresentado até aqui, ela se evidencia como manipuladora e criadora de uma narrativa. Essa enganação é o suficiente para ativar o espectador, que se sente duplamente traído (por Penny e por Chloé), passando a questionar todas as imagens que está vendo. O que importa não é descobrir qual é a opinião final da diretora sobre o tema que permanece em aberto, mas sim que as imagens e suas narrativas sejam postas em dúvida. Similar procedimento é realizado em Forensickness: tendo como base o filme Watching the Detectives, Chloé questiona a hiperanálise das imagens na era digital, que chega ao nível mínimo dos pixels e rapidamente vira uma paranoia coletiva. Ao mesmo tempo, em uma aparente contradição, o que a própria faz é hiperanalisar Watching the Detectives com Forensickness. Com muito bom humor, ela mesma reconhece ter caído no estado paranoico do filme.
Diante dos dois exemplos, chega-se a duas conclusões. Primeiro, que Chloé percebe uma ideia de viralidade no cyberepspaço, o que acontece quando ela adquire a paranoia de Forensickness e quando ela acha que está com a doença discutida em Watching the Pain of Others. Segundo, que ela cria um método para sua pedagogia, consistindo em mimetizar com autoconsciência aquilo que ela busca criticar – inclusive estando disposta a sacrificar sua credibilidade com o espectador para plantar dúvidas nele, por entender que a contradição ativa a percepção de processos antes escondidos. A cada clique que abre uma nova página, uma porta se abre para um mundo desconhecido a ser explorado, uma possibilidade de anular e reconfigurar todo o espaço anterior com suas informações. Assim, seus filmes se tornam uma investigação do que significa a própria atitude de investigar, uma autofagia metalinguística, evidenciando as características do desktop movie ao mostrar seus próprios processos.
Nesse sentido, é possível enxergar a influência do cineasta alemão Harun Farocki para a formação de Chloé, uma vez que revelar os meandros dos processos também sempre teve um papel central em suas obras. Por exemplo, ao mostrar as etapas dos bastidores de um ensaio pornográfico (Ein Bild, 1983) e um publicitário (Stilleben, 1997), o alemão faz o espectador refletir sobre a natureza farsesca das fotos que ele costuma consumir no dia-a-dia sem consciência dos seus processos. Tal como Farocki, Chloé também joga luz em cadeias produtivas invisíveis. Em Watching The Pain of Others e outros de seus filmes, ela mostra no programa de edição, por meio de blocos coloridos, como Pain of Others divide seu tempo entre as três protagonistas. Já em Forensickness, ela imprime três quadros da película do filme e bota um debaixo do outro, descobrindo que há uma continuidade das linhas que os cruzam. Ao refazer o caminho inverso de pegar um filme-produto e voltar para as etapas fragmentadas de sua cadeia produtiva, Chloé revela estruturas de montagem antes escondidas.
Tanto em Farocki como em Chloé, há uma herança de Bertold Brecht e seu teatro político. Busca-se o engajamento do público, que deve tomar parte do processo analítico das imagens, adquirindo uma atuação despertada. Há aqui uma aproximação que também passa pela ideia exibicionista do Cinema de Atrações, termo cunhado pelo historiador Tom Gunning para falar de parte do Primeiro Cinema que rompia o mundo ficcional ao solicitar a atenção do espectador. Sendo o poder único do Cinema a capacidade de “fazer as imagens serem vistas” (Fernand Léger), Chloé e Farocki fazem do invisível algo visível, o que significa uma “experiência que consiste em examinar indefinidamente uma determinada imagem, encontrar um sentido ao que, à primeira vista, parece um caos de forma sem significação” (Paul Virilio).
Falecido em 2014, Farocki teve sua carreira marcada pela investigação do avanço tecnológico e as suas formas de representação, atravessando a história vista por fotografias tiradas de aviões de reconhecimento, imagens televisivas e amadoras, câmeras de segurança, simuladores virtuais e videogames. Logo, um caminho natural que o cineasta poderia ter seguido, caso ainda estivesse vivo, seria o da exploração do cyberespaço através do desktop movie. Sem jamais saber como seria esse futuro hipotético, hoje é possível olhar para o presente e enxergar Chloé Galibert-Laîné como um dos nomes mais promissores na continuidade ao legado farockiano, uma precursora no enfrentamento crítico dessa nova tecnologia que deve ser desbravada e colocada sob interrogatório.