A ética do trabalho infinito em Holy Motors

Por Gabriel Papaléo

“Nos dias de hoje, uma das igrejas de Tlön sustentam platonicamente que tal dor, que tal matiz esverdeado do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. (…) Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare, são William Shakespeare.”

                                        Jorge Luís Borges, Ficções.

 

Como se define a ética de um trabalho infinito, se o que legitima os limites do labor é o tempo? Em Holy Motors, Oscar parte da mansão onde dormiu para um dia de trabalho na sua limusine branca de rico economista (ou bancário, ou chefe no mercado financeiro, ou outra coisa), já fazendo ligações profissionais no caminho até o centro de Paris, e a partir daí serão muitas as profissões do protagonista, sempre partindo dos mistérios; de possível excêntrico milionário a encontrar vidas menos luxuosas a confirmado ator do destino invisível de uma corporação nunca vista. O único lugar onde Oscar reflete sobre o que faz é no trânsito, onde podemos acessar mais de suas ambições, frustrações e desejos; o único lugar onde vemos alguém acordar em casa é no prólogo com o despertar do diretor Leos Carax, a entrar num cinema cuja plateia dorme. O artista só reflete sobre seu tempo infinito quando acorda e quando se desloca. Pés em solo firme e consciência recuperada, é tempo de intuição, sentimentos, e sobretudo ação.

Dos elementos que mais estrutura Holy Motors como um travelogue por Paris, pelo imaginário do Cinema, pelas vidas muitas de Oscar, pelo iconográfico de personagens burgueses no Ocidente, é o ludismo no qual encara a atuação. A cada nova troca de cenários, pessoas e memórias, o mistério paira pela superfície digital que só permite sonhos em glitch. Carax nos convida a vagarosamente reconfigurar nossas expectativas, colocando contexto e personagens com simplicidade para imergir na ação e buscar rapidamente empatia diante daquelas novas vidas. Estariam essas vidas em conflito? Falta algo ao ator das muitas vidas?

HOLY MOTORS

O passeio pelos gêneros, portanto, também configura as disparidades sociais nele embutidas, como uma carta ao potencial plural de fissão e guerra da narrativa. O filme começa com um banqueiro, mas no meio Oscar assassina a si mesmo para pontuar a disparidade. Em dado momento, os violinos graves sobem para adornar o drama burguês do velho que morre; pouco antes, um pai ausente busca a filha adolescente numa festa onde era preterida, em seu carro modesto e roupas simples, na situação de drama social que passeia por um subúrbio de pedras inconciliável com os vastos jardins da mansão do primeiro Oscar. O que lhe espera é sempre a limusine, a certeza do trânsito, a companhia via relação de trabalho com Édith Scob, os olhos sem rosto que aqui são o traço de harmonia mais próximo do protagonista.

Claro que por conter passeios tão breves Holy Motors abraça a disposição a personagens arquetípicos, e na hora de satirizar comportamentos Carax mira onde lhe é mais caro, enquanto francês. O fotógrafo esteta que fala inglês entra em cena como caricatura barata, difuso nas metáforas, ridículo nos encantamentos. Grita histriônico a Merde, o mendigo comedor de flores que Oscar vive na invasão ao cemitério, e explora sua miséria quando lhe parece devido. Esses holofotes da fama e do glamour que a arte emana nesse trecho do ensaio fotográfico é usado em contrapartida ao isolamento do estúdio, da relação animalesca entre ator e atriz no motion capture, do ritual de aproximação que gera o gesto computadorizado – que também é cena, também é toque -, e encontra paralelo nos silêncios entre Merde e a modelo vivida por Eva Mendes, recriando seu desfile particular na caverna, sua Pietà farsesca diante do homem que caminha na linha da veneração e objetificação. (não que sejam coisas distintas, mas enfim.)

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Onde está o espectador diante de câmeras agora tão pequenas?, pergunta Oscar, em uma de suas muitas ranhetices sempre respondidas com sabedoria por Céline, a motorista da limusine, que parece não se importar com essa insegurança emocional do ego da atuação; uma câmera está nela o tempo todo, afinal. Essa preocupação com a imagem que retrata, discussão direta por razões óbvias do filme, aparece sobretudo no shopping abandonado que Oscar visita com Eva Grace para uma última canção. O fóssil abandonado de uma antiga civilização comercial, com seus manequins jogados, representam menos o bobo pensamento de uma sociedade de consumo afetada por contemporaneidades, por padrões de beleza, e todos os tipos de crítica mais enfadonhas ao ser retratadas nesses símbolos fáceis, e entram mais como corpos físicos de fantasmas que ali passaram, efeitos do tempo de um passado não tão glorioso, mas que deve ser lembrado de alguma forma, porque é cidade. E a reação com o maravilhamento do trivial na cidade (que Céline ressalta a Oscar mais de uma vez) age como respiro ético diante da insensatez infinita do trabalho, diferente da cidade-bolha de estúdio da limusine de Cosmópolis, por exemplo, na qual o trabalho se estendia à rua das formas mais violentas.

Como homem que passeia, tão ou mais que homem que atua, Oscar aparece como o flaneur de Baudelaire, na cidade que contém muitas historias de Benjamin. É um diálogo sem dúvida antigo o da dedicação ao olhar da pluralidade de fantasias da cidade, suas histórias múltiplas que transcorrem e se perdem no dia-a-dia, mas é raro percebe-la sob essa empolgação imaginativa como no filme de Carax. Paris é fotografada como uma cidade de sonhos terrenos, de vidas cotidianas a se cruzar, prestes a ter tramas desbaratadas e quadros dissolvidos a qualquer momento. Nesse sentido, Holy Motors caminha como um filme que parece sempre ter existido, pela forma que a familiaridade com os temas e fluxos de seu protagonista existem no imaginário cinematográfico do espectador, em algum nível que seja. Não que seja uma construção narrativa de referências e reverências, nem que busque um perigoso e tão empostado universalismo estético, mas que use do Cinema para palcos diversos de jogos cênicos – que revelam mais sobre a política dos corpos nessa Paris, suas memórias e fantasmas, e como o presente guarda tanto.

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A magia desse cotidiano, da trivialidade, é encarada sob a ótica do trânsito, e não necessariamente da reflexão teórica, acadêmica. É ingênuo pensar na vida exercendo sua beleza do gesto, mas aqui o pêndulo do vento parece colocar Oscar onde as histórias precisam dele, e através dela revela-se violências estruturais que passam batidas por nossas vivências porque, como Oscar, não temos tempo para a cidade. As demandas até aparecem como contratos da empresa simbólica na qual Oscar trabalha – da qual nesse texto não entrarei em detalhes, uma vez que acredito nela como ferramenta narrativa de ligação de cenas, mera âncora dramática, não interessando tanto à leitura articulada aqui -, mas as histórias parecem geradas à esmo, como contos reunidos num livro, buscando sentido entre elas através da concisão temática que une todo o filme, na pulsão maníaca e francamente divertida de tentar criar imagens poderosas e efêmeras o suficiente para narrativas que se desafiam e se confundam entre si.

A explosão social do súbito arroubo de violência contra o banqueiro, em praça pública, é um desses exemplos de violência estrutural – e de curto-circuito narrativo que não é esclarecido, e tampouco inspira a resoluções; a Carax, interessa o mistério. Todos os homens, como na citação de Borges, agem e respondem a seus respectivos papeis e sofrem suas consequências, por vezes conflitantes, seja teórica ou socialmente, em tempos simultâneos ou distantes, em legado ou em corpo. O fato da memória de Oscar pouco importar para sua vida, e em nada importar para o trabalho, fala sobre esse tempo suspenso onde o presente é o único que existe, e diante do futuro incerto e oculto, o passado parece apenas obstáculo que complexifica os papeis de seguirem o planejado pelo acaso; a piada do destino, como for.

O trabalho infinito entra como antítese de uma vivência de experiências que duram. O que é fugidio, geralmente o que constroi momentos duradouros e sentimentos sempre interpretados e nunca reproduzidos, acaba sendo vivido, superado, e portanto eclipsado. Os dramas pessoais de Oscar passam sempre pela prisão da convivência artística, seus amores passados distantes pelo fluxo da profissão, seus amores futuros como promessas de um dia atuar novamente. O musical como aceno a um passado de insuficiências, o drama burguês como forma de enganar a morte através da promessa.

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Viver e morrer tantas vezes na cidade de recomeços, nesse filme moderno (e não necessariamente contemporâneo) nas vivências múltiplas do urbano, no qual as historias acontecem, o trabalho corrompe e faz o trânsito acontecer. A beleza do gesto se mantém mesmo que as câmeras tenham sumido, e esse existencialismo de frustração com as motivações úteis do trabalho parece o tipo de vislumbre contemporâneo que Holy Motors toca ocasionalmente para discutir sobre a experiência como commodity, saber que o trabalho está a serviço de alguém invisível e intocável, mas continua sendo feito porque a paixão pelo corpo e pelo movimento existem. “Pelo mesmo motivo que comecei: a beleza do gesto”, Oscar lembra a Michel Piccoli, para que não haja dúvidas.

Essa fina linha entre o desapaixonado e o encantamento pela imagem que fazem o filme de Carax tão especial no olhar para a historia das imagens – e o que os espectadores podem devolver a elas, sendo representados nas muitas historias possíveis dessa Paris utópica, sendo representados no eterno serventilismo do agir diante dos outros; seja para fins profissionais, ou emocionais. Na cidade moderna, até os carros são dotados de sentimentos e elucubrações; não é de se espantar que quem mais trabalha ao infinito sejam as máquinas que dormem juntas, e portanto tem a possibilidade de se organizar para existir além das performances demandadas pela cidade e suas luzes.

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