EDITORIAL: CINEMA E BANDIDAGEM

por João Campos

Ali havia assassinos por acaso e assassinos por ofício, bandidos e chefes de bandos. Havia simples ladrões e vagabundos – gatunos e arrombadores. Havia outros sobre os quais era difícil dizer o motivo por que estavam. E, no entanto, cada um tinha uma história, confusa e pesada como a ressaca da bebedeira da véspera. Em geral, poucos se referiam ao próprio passado, não gostavam de tocar no assunto e pelo visto procuravam não pensar em tempos idos. Dentre eles conheci assassinos que eram tão alegres, que evitavam tanto cair em reflexão, que se podia apostar que a consciência nunca lhes fizera nenhuma censura. Mas também havia tipos sombrios, quase sempre calados. Geralmente era raro alguém contar alguma coisa sobre a própria vida e, ademais, a curiosidade estava fora de moda, como que ausente dos costumes, não era de praxe.

Fiódor Dostoiévski, “Escritos da casa morta” (1862).

Os bandidos e a bandidagem têm história no cinema mundial. É possível detectar, entre filmes de épocas, estilos, países e gêneros variados, uma linhagem subterrânea em que se amontoam aparições de bandoleiros, contraventores, criminosos e facínoras. As cenas da criminalidade saltam aos olhos dos espectadores que se aventuram pelos universos tão díspares quanto semelhantes dos filmes de gângsters e westerns, documentários e filmes de ação. Ao expandirmos o escopo do cinema para o audiovisual, chegamos à obsessão contemporânea com séries televisivas de true crime, em que histórias reais de criminosos e crimes notáveis são deglutidas para um público ávido por desgraças em formatos acessíveis.

Percorrendo os caminhos do crime no cinema, topamos com figuras como as do bandoleiro que assassina e rouba em vilarejos de filmes de faroeste; o gângster e o policial corrupto das cidades labirínticas do filme noir; o matador profissional dos pastiches neo-noir; o bandido social dos cinemas modernos; o serial killer e o psicopata das fitas de horror. Restos da sociedade, os criminosos são mostrados como personagens turvos: homens e mulheres sem passado que transitam na linha tênue entre a aparição e a desaparição, a cena do crime e o esconderijo.

Cenas da contravenção se desenham no ecrã: roubos, mortes, canibalismo e atos de rebelião. São cenas fora da lei habitadas por outsiders que aparecem ora às margens, ora no centro da produção cinematográfica global, em obras que brincam com o perigo no plano da imaginação artística.

Diante desse universo artístico polifacético, a nova edição da Multiplot propõe uma viagem reflexiva por obras que dão forma e sentido ao universo da criminalidade. Seguir as linhas da bandidagem no cinema é a tarefa do dossiê Cinema e Bandidagem. Quais são as formas da criminalidade no cinema? Como as figuras de criminosos fora da lei aparecem e variam entre filmes distintos?

Com isto, pretendemos pensar com o universo dos brutos no cinema para finalmente construirmos um atlas do crime com análises de filmes de épocas, gêneros e estilos variados.

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Cuidado Madame de Júlio Bressane

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