por Rodrigo de Abreu Pinto
Quem é um “bandido”? A pergunta é difícil, afinal, a resposta é ampla. É o que ensina Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere mediante a sua descrição dos diversos colegas com quem conviveu na prisão. Ou Maria Sylvia de Carvalho Franco, em seu clássico Homens Livres na Ordem Escravocrata, em que explora transcrições de autos de processos-crime, datados do século XIX, para traçar uma análise multifacetada dos homens livres, pobres e delinquentes que permeavam a sociedade brasileira.
Já que se trata de cinema, a pergunta pode ser mais bem delimitada: o que é um “bandido” no cinema? Ou melhor, o que significa pôr um bandido em cena? A história do cinema também é ampla o suficiente para que uma resposta exaustiva seja impossível. Basta lembra do sem-número de gatunos, meliantes e foras da lei em filmes de faroeste, noir, horror, ação, etc. Quero então me debruçar sobre uma questão específica o bastante: os regimes de representação dos bandidos no cinema moderno brasileiro, filmado entre os anos 50 e 70.
Na raiz do cinema moderno brasileiro – quando os filmes engatinhavam rumo à uma linguagem menos sujeita às regras do estilo clássico de estruturação da narrativa e composição das cenas – a figura do bandido é bem ilustrada na obra de Lima Barreto, O Cangaceiro (1953) – aliás, vencedor do Prix International du Film d’Aventures no Festival de Cannes, o prêmio mais importante conquistado pelo cinema brasileiro até então. O filme ganha vida em meio a um ataque do bando de cangaceiros, liderados por Galdino, em uma pequena vila do interior. É nesta ocasião que o bando sequestra a professora Olívia, com o objetivo de usá-la como moeda de troca para obter um resgate.
Acontece que um dos membros do bando, Teodoro, se apaixona por Olívia, ao lado de quem foge e abandona o cangaço. Galdino não se conforma e assim inicia uma perseguição a Teodoro, ao final da qual ele é morto.
Fato é que Teodoro até tenta se redimir e começar uma nova vida ao lado de Olívia, só que não é capaz de escapar das vicissitudes de sua vida pregressa no cangaço. A moral da história é que o banditismo é um fardo, fundado em uma visão maniqueísta do mundo, em que os espectadores só podem sentir pena pelos imersos neste mal de modo definitivo.
Em anos seguintes, mesmo em filmes já impregnados pela convergência entre “política dos autores”, baixo orçamento e renovação da linguagem, o caráter moralizante da figura dos bandidos permanece. A convivência entre o novo e o arcaico refletia o momento de transição do cinema brasileiro em que a reforma da linguagem e a crítica social já se impunham, mas coexistiam com o didatismo moral na representação das classes marginalizadas – o que, por sua vez, era expressão de mentalidades formadas em processos de longo prazo, tal como refletidas no senso comum do brasileiro.
É o caso de Um Favelado (1962), curta de Marcos Farias incluído na coletânea 5x Favela, caracterizado pela contradição entre, de um lado, as filmagens em locações reais, o uso de atores não profissionais e os movimentos de câmera rebeldes; e, de outro lado, a representação do bandido como uma mera vítima das circunstâncias sociais, premido pelos desafios de redenção moral.
A passagem só se completaria à medida que as leituras críticas da sociedade brasileira se aprofundam. Tal maturidade é evidente na obra de Glauber Rocha, a exemplo de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), feito no auge da ascensão política da esquerda a ponto de que a expectativa de mobilização das massas se refletiu na violência estética e reflexão sociológica do filme.
A obra está situada no sertão nordestino, onde estamos ao lado de Manuel (Geraldo Del Dery) e sua esposa Rita (Yoná Magalhães). O espectador é apresentado às duras condições de vida dos trabalhadores rurais em meio à exploração pelos grandes proprietários de terra, os chamados ‘coronéis’. Até que Manuel se revolta, assassina o coronel e a narrativa se desdobra em uma corrida que alegoriza a esperança de que “o sertão vai virar mar”, como cantado nos versos de Sérgio Ricardo.
O vaqueiro topa primeiro com Sebastião (Lívio Moreira), um líder religioso que promete a emancipação dos camponeses pelo intermédio da fé. Em seguida, se depara com Corisco (Othon Bastos), o cangaceiro para quem a libertação decorreria da violência. O filme acaba no momento em que o passo seguinte está disponível apenas para o espectador, a quem caberia a redenção através da política. Inserido nessa teologia, o cangaceiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol é, à sua maneira, uma releitura daquele que protagoniza o filme de Lima Barreto. Em lugar do banditismo tomado como natureza e alheio a qualquer mística, o Corisco de Glauber Rocha simboliza uma resistência contra um sistema que força os indivíduos a adotarem o papel de outsiders e rebelados. Justo o oposto do que faz Lima Barreto com Teodoro, como o próprio Glauber detalha em seu Revisão Crítica do Cinema Brasileiro:
“Sem ter entendido o romance do cangaço e sem ter interpretado o sentido dos romances populares nordestinos, Lima Barreto criou um drama de aventuras convencional e psicologicamente primário, ilustrado pelas místicas figuras de chapéus de couro, estrelas de prata e crueldade cômicas. O cangaço, como fenômeno de rebeldia místico-anárquica surgido do sistema latifundiário nordestino, agravado pelas secas, não era situado”. (ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 91)
Só o insucesso dos movimentos políticos suscitaria uma releitura da figura do bandido, desta vez em chave pessimista. Se do cangaceiro sacralizado por Glauber Rocha era legítimo esperar um gesto redentor, nada mais distante dos personagens de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Ozualdo Candeias.
A representação em tons épicos e revolucionário é substituída pelo bandido em formas tipicamente urbanas – menos prestigiadas e atreladas ao imaginário da sociedade de consumo – como a cultura do gibi, das colagens e dos circos de periferia. A estética do mau gosto que daí advém resulta em uma representação da bandidagem que desconforta o espectador e alegoriza o percurso do cinema brasileiro e do país.
Esta é a leitura canonizado por Ismail Xavier em seu “Alegorias Do Subdesenvolvimento”: os marginais que protagonizam Bandido da Luz Vermelha (1968), O Anjo Morreu (1969) e Matou a Família e Foi Ao Cinema (1969) representam; uma ruptura com a pedagogia cinema novista; e, em maior escala, um escárnio contra a nação utópica outrora prestes a se tornar realidade pela tomada de consciência das massas.
Já ninguém se interessa em fazer uma gênese do bandido, tal como vimos em Lima Barreto e Glauber Rocha, porque a bandidagem se alastrou de cima a baixo, sobretudo nos estertores do poder usurpado pelos militares. Foi o que Rogério Sganzerla escreveu: “Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha. (…) É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo”. O filme de Sganzerla pinta o retrato do marginal com ironia absoluta. Para isso, inspira-se em um caso real, o do assaltante de bancos João Acácio Pereira, mais conhecido como o “Bandido da Luz Vermelha”, já que usava uma lanterna de luz vermelha durante os crimes.
Mas no final das contas, o foco do filme mal recai sobre o personagem em si, e sim sobre a curiosidade alienada e midiática da sociedade sobre o criminoso. Que é justamente o que faz dele um bandido carismático e, acima de tudo, um espelho da sociedade – o que faz dos extremos do maniqueísmo (sociedade e bandidos) dois lados da mesma moeda.
A intuição Rogério Sganzerla – apta a torná-lo o artista descrito por Ezra Pound (“os artistas são as antenas da raça”) – é que percebeu uma tendência social que apenas nascia. Em texto clássico sobre o assunto, Michel Misse conta que mal se falava de violência urbana no Brasil até o início dos anos 1970 (ver MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas: Revista De Ciências Sociais, vol. 8, nº 3, pp. 371–385, 2008)
Não é que a violência não existisse. O que não existia era uma sensibilidade para a violência – que estava ali, mas não era percebida como um problema. Nas palavras de Misse, “[f]icava confinada aos jornais sensacionalistas, lidos apenas pelas classes populares” (p. 376), tal como aqueles que Rogério Sganzerla emula em seu filme.
O momento em que o discurso sobre a violência ganha releva coincide com a ascensão de um famoso grupo paramilitar, criado por policiais do Rio de Janeiro, chamado de ‘Esquadrão Le Cocq’ (em homenagem ao policial Milton Le Cocq, morto durante confronto com o criminoso Cara de Cavalo). Uma vez que as ações do grupo amiúde resultavam em mortes de suspeitos, a imprensa passou a chamá-los de ‘Esquadrão da Morte’.
Uma das estratégias de legitimação do grupo era a veiculação do discurso de que “bandido bom é bandido morto”, como um dos integrantes disse à imprensa um de seus integrantes (o mesmo que seguiria carreira política com o uso de tal bordão em campanhas eleitorais). Segundo Michel Misse, os efeitos disso é que a incriminação se antecipa preventivamente à criminação – ou seja, antes que haja um crime, há um criminoso potencial desse crime. A disseminação de tal figura do “criminoso” era refletida em manchetes da época, como “As cidades estão com medo” (estampada na Veja) ou “Criminalidade cresce em todo o país” (no Jornal do Brasil).
Disso emanou uma estratégia estética que seguia a trilha do Cinema Marginal – no tocante à equivalência entre bandidos e supostos mocinhos – só que em chave didática.
Os exemplos mais famosos estão em trabalhos de Helio Oitica. Em sua obra-homenagem à Cara de Cavalo, assaltante morto pela polícia, Oiticica apresentou uma caixa com paredes forradas pelas fotos do cadáver. Apresentada assim, a obra denunciava “a repressão e assumia o marginal como figura da revolta a ser interpretada dentro de uma rede mais ampla de relações, fora do maniqueísmo legitimador da sua execução sumária”, como escreveu Ismail Xavier[1].

No âmbito do cinema, a tematização do bandido nesta chave aparece em Lúcio Flávio Passageiro da Agonia (1977), de Hector Babenco. Era o momento em que o cinema brasileiro deixava para trás a radicalidade do cinema marginal – cujo saldo estético era positivo, embora ao preço do isolamento – a fim de reestabelecer uma comunicação ampliada com o público. Disso dependia a adoção de uma linguagem mais convencional, mas sem abrir mão da eficiência na análise social. Lúcio Flávio (Reginaldo Faria) começa a sua trajetória como um bandido envolvido em pequenos delitos e logo se especializa em assaltos a bancos. Ele é capturado, preso e desde então fica sujeito às arbitrariedades dos policiais que exploram os presos, seja por meio de extorsões ou violência física.
Para demarcar a diferença entre Lúcio Flávio e os policiais, Hector Babenco organiza representação da seguinte maneira: de um lado, o protagonista é apresentado por meio de sua atuação pública, mas também em sua vida privada, na qual manifesta valores positivos e que revelam uma “verdade maior” do personagem; e, de outro lado, os policiais são apresentados em meios atos de violência, cometidos com frieza, método e cálculo que bloqueiam qualquer identificação com os espectadores.
É nesse sentido que estamos em viés melodramático semelhante ao filme de Lima Barreto analisado inicialmente, em que a dicotomia entre público e privado privilegia a “verdade interior” como sentido prevalecente dos personagens – o que, afinal, se explica pela estratégia de conquistar audiência de ambos os filmes. A diferença é que a obra de Babenco não desemboca na oposição fatalista entre personagens bons e maus, e sim em uma análise social que desvela os desmandos de uma política mais bandida que qualquer bandido.

Lucio Flavio Passageiro da Agonia
Os diferentes capítulos da história do cinema brasileiro – e, em particular, os 4 (quatro) filmes analisados mais de perto (O Cangaceiro, Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Bandido da Luz Vermelha e Lúcio Flávio Passageiro da Agonia) – compõem um mosaico incompleto, só que suficiente para demonstrar os diferentes fins a que servem a representação de bandidos no cinema brasileiro.
O que fica claro, em todos eles, é que a ambiguidade que caracteriza os bandidos – temidos pelos seus crimes, mas cheios de irreverência e bravura, já que isso é necessário para o êxito de suas ações – faz deles personagens prontos a servir de alegoria e iluminar os pontos cegos da experiência social. Arrisco-me a dizer que dificilmente outro tipo social tenha cumprido tantas vezes este desígnio. Daí porque dos bandidos ainda há muito a ser roubado.
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