O QUE ACONTECE QUANDO UM FILME DANÇA? (Dácia Ibiapina, 1984)

Por João Paulo Campos 

Entre 1978 e 1985, o grupo Mel de Abelha se dedicou à realização de filmes com câmeras caseiras super 8mm em diferentes cidades do Piauí. Este engajamento coletivo surge a partir de uma postura crítica em relação à apatia da intelectualidade piauiense diante dos fenômenos sociais que surgiram durante a ditadura civil-militar brasileira. Tudo se passa como se o grupo estivesse dizendo: se os intelectuais não querem pensar a miséria, a fome, o crescimento urbano desordenado e a criatividade popular, o cinema o fará.

Os membros do grupo Mel de Abelha compartilharam a tarefa estética (e não menos política) de dar forma às culturas locais a partir da perambulação pelos ambientes com a câmera na mão, gesto facilitado pela portabilidade das câmeras utilizadas. Filmes realizados pelo grupo — como Espaço Marginal (Luís Carlos Sales, 1980) e O pagode de Amarante (Dácia Ibiapina, 1984) — abrem mão da elaboração de teses generalistas sobre a pobreza  e  opressão  capitalista  típicas  da  produção  documentária cinemanovista para praticar uma interação inquieta com as cidades do Piauí, produzindo perspectivas de lugares tão distintos como o centro urbano de Teresina e o bairro que serve de palco para a festa popular em O pagode de Amarante. Este filme de Dácia Ibiapina parece querer nos tirar para dançar. Mas o que acontece quando um filme dança?

Nos créditos iniciais desta obra lemos “Um filme do grupo Mel de Abelha” sob a tela preta granulada. Escutamos em destaque o batuque do pagode marcando o compasso de nossa fruição – o corpo estremece, sentimos o ritmo com olhos, ouvidos, barriga e os pés pisando-pisantes. Os créditos se encerram para nos mostrar imagens de um bairro localizado no alto dum morro da cidadezinha de Amarante. Vemos planos fixos de casebres, postes de iluminação e fiação elétrica, o movimento pacato nas ruas de terra, animais e crianças brincando na sombra. A montagem sobrepõe as imagens da paisagem local à voz de Chico Dedinho, convidando o povo de Amarante para a filmagem que o grupo Mel de Abelha realizará mais tarde no pagode na casa de João Bitu.

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

  Nesse prólogo, já é possível perceber dois traços característicos da obra de Dácia Ibiapina. Em primeiro lugar, nota-se uma entrega da equipe ao encontro com as pessoas e os lugares filmados. Esta forma de trabalhar parece buscar a instauração de uma comunidade, ainda que provisória, entre equipe de filmagem e seus interlocutores – modo de trabalho que resulta numa conversa franca e direta com as pessoas. A própria forma do filme nos sugere que a relação produzida no encontro entre os envolvidos na filmagem é de franca aliança e camaradagem. Em segundo lugar, destaco a atenção particular que a autora dedica à montagem, que não apenas encadeia os fragmentos, mas também interrompe nossa fruição com o objetivo de produzir choques. A forma com que a cineasta amarra as bandas sonora e imagética também se destaca. Não se trata de inscrever numa forma simétrica ou simultânea som e imagem, mas tecer com os materiais algo singular. Um filme tecido, tal qual um bordado.

Responsável por fazer aparecer aspectos da fisionomia da cidade ao mesmo tempo que desdobra o convite de Chico Dedinho aos possíveis espectadores desta obra, a sequência inicial é bruscamente cortada pela montagem. Interrompendo o fluxo de uma possível apreciação idílica das imagens da cidade-vilarejo, Dácia Ibiapina apresenta o discurso do anfitrião dos pagodeiros, João Bitu, a partir de um enquadramento frontal. A entrada disruptiva da entrevista e a relação dialógica com a pessoa que discursa toma a forma de um papo reto com o público.

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

  João Bitu nos comunica a razão de ser do pagode de Amarante: “O pagode aqui é o seguinte. (… ) o esforço que a gente faz é pra fazer ter movimento”. O homem se queixa dos preços altos que atrapalham a vida naquele tempo e apresenta o pagode como uma forma de arrecadar dinheiro e inventar formas de se movimentar em reação aos problemas que assolam a comunidade. O pagode também convida os “velhos pra dançar”, contribuindo para a lembrança de que eles estão vivos e, por isso, não podem ficar parados, pois, “se nóis fica parado, nóis fica morto”.

O discurso do personagem provocado pela entrevista de Dácia Ibiapina descortina aspectos de uma situação social e política que ambienta o festejo popular. As forças invisíveis que surgem no discurso do pagodeiro Bitu são capazes de imobilizar os corpos das pessoas pobres (sobretudo as mais velhas), e também podem suscitar reações bastante inventivas, como é o caso do pagode. Nesse contexto de precariedade material, devido ao desemprego e à inflação, os pagodeiros de Amarante colocam as pessoas a “pular prum lado e pra outro” numa coreografia alegre. Uma resposta criativa às forças petricantes que emergiram das entranhas do “Milagre Econômico” do governo militar.

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

  Da entrevista saltamos para o festejo popular. Com a câmera na mão, a documentarista se imbrica no outro em festa: é noite de saliva, suor e pagode em Amarante. Homens e mulheres comem, bebem e dançam girando de um lado para o outro da roda iluminada por alguns refletores. Nos interstícios da movimentação dos corpos, distinguimos semblantes embebidos de suor e pagodeiros tocando seus instrumentos. Os pés dançantes enquadrados em plongée (de cima para baixo) evocam imagens de um filme realizado dois anos antes por Leon Hirszman, Partido Alto (1982). Ambas as obras se dedicaram a uma observação e escuta atentas às diferentes formas da criatividade popular a partir de engajamentos etnográficos de casos particulares: o pagode no Piauí e o samba de partido alto no Rio de Janeiro. 

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

A montagem do curta de Dácia Ibiapina entrelaça imagens das pessoas dançando com entrevistas com os pagodeiros. Além disso, é possível distinguir um motivo visual que se tornou recorrente no cinema da diretora: a observação das pessoas na labuta. No meio do festejo, a documentarista desvia nossa atenção para as mulheres que preparam a refeição do pagode. São trabalhadoras de movimentos manuais ágeis que se colocam na tarefa de descascar laranjas a fim de colaborar para a nutrição da coletividade na farra.

A noite se encerra e o dia ressurge. Acompanhando o movimento do pagode que não cessa com a noite virada, a câmera curiosa da cineasta deambula pelo espaço como se tentasse mimetizar o movimento dos corpos. Explorando a silhueta escurecida das construções à contra luz da manhã que se anuncia, Dácia Ibiapina rascunha desenhos com sua máquina-mão, brincando com os volumes negros das casas e árvores.

Frame do filme O pagode do Amarante (Dácia Ibiapina, 1984)

  O pagode de Amarante inventa uma instância que acolhe a alteridade e dá tempo à performance popular, nos oferecendo uma etnografia sensorial do movimento dos corpos que se misturam articulada ao ritmo intenso do pagode e aos discursos das pessoas entrevistadas. Este poderoso experimento procura antes performar em relação à alteridade e produzir uma ação no espaço citadino do que representar cidades e culturas.

Se aproximando do happening e da performance, o filme realiza um engajamento sensual com a festa popular. Dácia Ibiapina nos presenteou com um curta-metragem de texturas que coloca a vida em seu devido lugar: em movimento. E eu, que sou duro como uma rocha e nem ao menos sei dançar, o que farei depois de assistir a esta raridade no atual contexto de petrificação no Brasil e alhures? Eu quero mais é cair num pagodão!

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