PALAVRAS AO VENTO: LUCÍA SELES E CHARLES ROXBURGH NA CONSTRUÇÃO DO COTIDIANO

Por Pedro Tavares

A relação do cinema com a palavra – escrita, falada, intencionada – é inerente à linguagem dos filmes narrativos e condensa seu rumo após o cinema das atrações. Seja pela relação direta como cartelas que comunicam intenções, sentimentos e caminhos de um filme sobretudo na fase do “cinema mudo” indo daqueles que mais investiram no lirismo das imagens como Dreyer ou daqueles que usavam palavras como um complemento às ações corporais como Chaplin e Buster Keaton. Há outros, como Jonas Mekas ou Hollis Frampton, que usufruíram da força das letras e palavras para comunicar, ou aqueles como Godard, que pagam tributo à palavra pela força da leitura, ou como Straub e Huillet, que transformam o exercício de compreensão em beleza. Ausência de explícita comunicação como forma de tensão narrativa e de representação, como são os casos de Chantal Akerman e James Benning, por exemplo, também perpassam a relação das imagens e da comunicação.

Se hoje é possível vermos uma teia de elementos de comunicação em um só plano em filmes como Unseen (Yoko Onomura, 2023), Desaparecida (Missing, Nicholas D. Johnson, Will Merrick, 2023) e Unfriended (Levan Gabriadze, 2014) na junção da palavra, mensagem de textos, imagens de desktop com o desenrolar da trama, chamam atenção dois realizadores contemporâneos que, de formas distintas, realçam a relação com a palavra e o verbo. A realizadora argentina Lucía Seles, de carreira prolífica e de método rígido em relação ao desenvolvimento de trama e construção de personagens, e o norte-americano Charles Roxburgh, que baseia suas comédias na verborragia e no como ela molda o cotidiano absurdo de seus personagens. 

São dois realizadores que residem em extremos opostos quando pensamos em construção e efeitos. Seles desenvolve suas tramas como contos passíveis de seus próprios comentários. Eles vêm em frases escritas na tela, tal qual uma mensagem de texto em um desktop movie. Ela comenta o caminho dos personagens, as locações, as reviravoltas e, claro, seus próprios métodos. Já Roxburgh utiliza de formas estabelecidas na sociedade moderna, como propagandas para televisão, espetáculos de stand up-comedy ou palestras, para dialogar com situações que se costuram muito bem com o subúrbio americano, local no qual seus filmes se desenvolvem. 

Roxburgh sempre trabalha em parceria com Matt Farley, protagonista de todos os seus filmes e que dirigiu Local Legends: Bloodbath (2024), longa-metragem que serve como representação satírica do pequeno núcleo que representa o cinema independente, sobretudo dos realizadores que usam de seus arredores e amigos para filmar e, que no primeiro lampejo de reconhecimento, entram em crise. Farley simplesmente utiliza das cartelas para afirmar que se trata de um filme de Roxburgh, ou seja, não há grandes mudanças nos métodos de composição. Bloodbath parece sair do mesmo mundo de Boston Johnny (2023) e Heard she got married (2021), estes sim dirigidos por Roxburgh, que está no elenco do novo filme de Farley.

Em comum, Seles e Roxburgh têm seus próprios universos desenvolvidos pelas palavras. Em Seles vemos os mesmos atores, personagens, locações e que aos poucos passam por mutações como uma série de filmes que muda de temporada, a exemplo da “tetralogia do tênis” composto por Smog en tu corazón (2022), Saturday disorders (2022), Weak rangers (2023) e Terminal Young (2023). O método de Seles segue intacto em seus mais recentes filmes como The Urgency of Death (2023) e Escuela Privada Alfonsina Storni (2024), mas o que chama atenção desta primeira “série” são as respostas vindas na mesma forma que seu método como vemos nas reações do público via Internet registradas pela Revista Caligari:

Roxburgh recomeça suas intrigas a cada filme, porém, como Seles ou Sang-Soo, seus métodos e referências dizem mais que os próprios personagens ao (re)compor seu mundo no subúrbio norte-americano. Frequentemente composto por relações do “dizer”, ou seja, recontar o que foi dito e, neste ato, ter tempo para ouvir as palavras escutadas com mais – ou menos, dependendo do caso – atenção e caminhar, durante o filme, para embates envolvendo situações passadas, Roxburgh condensa a vida cotidiana e seus pequenos curtos-circuitos. Seja em uma promessa feita que é obrigada a ser descumprida e que levará às mágoas de um homem a explodir, ou um homem apaixonado que tocará suas músicas em um restaurante para conquistar o seu amor e renega a força de uma boa conversa, o diretor cria teias de relações de caos e bonança com o humor que lhe é característico e que dá espaço para seu protagonista-parceiro Farley refazer seus caminhos e ironizar este feito.

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Um filme que não é de Charlie Roxburgh.

O que difere de Farley a emular Roxburgh com John Turturro a fazer um filme de Woody Allen em Fading Gigolo (2011) ou Alfonso Arau em Picking up the Pieces (2000) por exemplo, é como sua frontalidade é passível de mudanças suaves como um divertido jogo dos sete erros. A pergunta é justamente se Roxburgh se comunicaria da forma que Farley ou se teríamos uma abordagem distinta. Este ruído que é intuitivo entre Roxburgh e Farley toma corpo na filmografia de Lucía Seles que utiliza de espaços coletivos – clubes, colégios – e pauta o espectro social e as distorções e repercussões das palavras ditas ou intencionadas. Como uma grande ação do ver e ouvir, Seles se permite intervir como uma ouvinte sentada à mesa com aqueles que contam a história, com seus braços cruzados e com frieza cirúrgica pronta para rebater o que se vê e o que se diz, ou, simplesmente, assumir suas identificações com personagens, espaços, situações e emoções. Dois casos ricos do cinema contemporâneo sobre a plurivalência do ensejo, mesmo quando se assume como diversão domesticada – ou poesia do mundo capitalista e que produzem em alta escala pois têm muito a dizer. Como um dos personagens de Local Legends diz: “você faz filmes com mais velocidade do que eu para vê-los”.

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Farley usa cartelas como troca de mensagens em Local Legends: Bloodbath! (2024)
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