por Carolina Azevedo
Não é de hoje que o cineasta argentino Matías Piñeiro se aventura na adaptação literária para o cinema. Em um ciclo de seis filmes ficcionais, o diretor explorou os papéis femininos em Shakespeare para realizar o que ele chama de suas “Leituras Shakespearianas”. A paixão pela tensão entre o cinema e a literatura continua a moldar a sua obra, mas sua empreitada agora é outra: em Tú me abrasas, Piñeiro adapta o texto Espuma do Mar, de Cesare Pavese, menos como ficção e mais como ensaio.
Ao tomar o diálogo construído por Pavese entre a poeta grega Safo e a ninfa Britomartis, Piñeiro não se limita a replicar as adaptações de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet filmando suas atrizes e colaboradoras “em um penhasco, vestidas de gregas, com panorâmicas”. Seu interesse é em fazer um filme que “pensa sobre como o cinema pode adaptar a nota de rodapé”, misturando o diálogo de Pavese com poemas fragmentários de Safo e uma breve leitura de Retrato de um amigo, de Natalia Ginzburg.
Tú me abrasas constrói seu discurso através de fragmentos, que, na materialidade do filme 16mm, se traduz em desejo: “o fragmento nunca é completo, o ritmo da montagem é rápido. Esses elementos refletem a ideia de desejo, sempre fugidio, além do alcance, em movimento.” Em entrevista, Piñeiro convida o espectador a entrar no jogo do fragmento cinematográfico e “colocar algo de si mesmo no filme”.
Como você se deparou com esse texto do Pavese e por que decidiu que ele deveria se transformar em filme?
Conheci Pavese como autor através de um professor meu, que me mostrou o filme Le Amiche de Michelangelo Antonioni, inspirado em Entre mulheres sós de Pavese. Isso foi há mil anos, na universidade, em 2001. De repente, o nome reapareceu através dos filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, que adaptaram muitos textos de Diálogos com Leucó. Ainda assim, não gerou um interesse muito particular. Eram só esses caminhos cinéfilos de explorar o texto. Mas, de repente, durante a pandemia, eu disse: “bom, vou ler esse texto de Pavese.”
Quando li Diálogos com Leucó, achei o texto muito difícil, hermético, fechado, e tive dificuldade em terminá-lo. De fato, a primeira vez que peguei o livro, não consegui terminar. Foi só depois, quando li outros textos de Pavese, que voltei Diálogos com Leucó e encontrei o texto de Safo e Britomartis, Espuma do Mar. Esse, em particular, me interessou muito pelo tema e pelo diálogo em si. Acho que é o único dos Diálogos de Pavese que é entre duas mulheres. Minha reação imediata foi escrever no livro o que se vê no filme, aquilo escrito em púrpura: “com isso, posso fazer um curta.”
Sempre tive vontade de fazer um curta, mas praticamente nunca consegui. Sempre começo um filme pensando que vou fazer um curta, e acabo fazendo um longa. Meus longas são curtinhos, como de uma hora, porque inicialmente têm essa ideia de ser um curta. Mas depois me dá a sensação de que, para funcionar, preciso expandi-los mais, e acabam tendo a duração que têm.
Você é um dos corajosos que se aventura na adaptação literária. O seu filme é um ensaio sobre a literatura, versando sobre tradução e resgate de textos antigos e analisando suas ressonâncias em escritos modernos – Pavese e Ginzburg. Para você, qual a relação entre cinema e literatura?
O que eu gosto na relação entre cinema e literatura é a tensão que existe, a resistência de um texto a ser adaptado de uma maneira natural para o cinema. O que me atraiu no texto de Pavese é que eu não sabia como filmá-lo. Quando o li pela primeira vez, havia algo muito estimulante, quase abismal, no sentido de que eu não podia filmá-lo da mesma maneira que tinha feito com meus filmes anteriores. Tive que encontrar uma nova ideia de encenação para fazer com que funcionasse. Eu não podia filmar Maria e Gabi em um penhasco, vestidas de gregas, com panorâmicas, como costumava fazer.
Então, me perguntar como eu poderia fazer isso foi o que começou a dinamizar uma série de filmagens, pequenos ensaios, experimentando ideias a cada mês, a partir de outubro de 2021. O jogo mnemotécnico, o jogo da memória, dos poemas, as imagens que surgem do texto – eu ia testando coisas diferentes a cada vez. Com essa situação de escrita, filmagem, montagem, escrita, filmagem, montagem, o filme foi se construindo como é. Claro, a ideia que encontrei é que eu não queria – percebi no processo – apenas adaptar o texto de Pavese, mas também adaptar suas notas de rodapé. Entender que o filme não era apenas uma adaptação de uma narrativa, mas também de outro gênero, que é mais ensaístico.
Então, a realidade tem essa mistura híbrida entre ficção e ensaio. E também os poemas de Safo, claro, que são uma espécie de desvio, como uma nota de rodapé que te conta tudo isso. O filme pensa sobre como o cinema pode adaptar a nota de rodapé.
O filme se constrói como fragmentos, ensaiando repetição e tradução em imagem. Você me mandou uma foto do seu caderno com alguns planos marcantes que se repetem. Você pode me contar um pouco sobre a história que as suas imagens querem contar ali?
O texto resistia a ser adaptado de forma natural. Mas eu gosto de trabalhar de maneira literal. De início, quando eu ainda não sabia como filmar, decidi captar certos elementos mencionados no texto. Uma montanha, um escorpião, uma onda, a espuma do mar. Me submeti a essas filmagens sabendo, desde o início, que seria um filme com muita voz em off. Como nos filmes de Marguerite Duras, India Song, Aurélia Steiner.
Mas um dos primeiros momentos foi reunir imagens, coletar imagens que estivessem ligadas às palavras ditas no texto. “Serpente, escorpião, espuma, sêmen, Helena (Helena de Tróia), Leucoteia, Calianira… não sei quem são, quem é Calipso?” O curioso é que tive muito tempo e uma dinâmica de produção muito independente, em que eu e minha equipe, muito pequena, nos permitíamos filmar como se escreve um ensaio, dia a dia, rascunhando, indo para frente e para trás. Isso não foi filmado em dez dias seguidos ou em quatro semanas. Foi filmado ao longo de um ano e meio, todas as semanas, com tentativas e erros, erro após erro.
Então, as imagens têm uma intenção, por vezes, muito literal, e outras vezes não. Um dos outros jogos era o jogo mnemotécnico e o jogo de memória do aprendizado de um poema de Safo, que consistia em filmar planos de coisas um pouco aleatórias, mas que, ainda assim, tinham sua lógica. As imagens foram se juntando, se tornando parte da minha vida e do meu aprendizado ao lidar com a câmera Bolex de 16mm. O filme também pode ser visto como um diário de como aprendi a trabalhar com essa câmera.
A Bolex determina o tom do filme. Por que você escolheu filmar com ela e em que resultados ela implicou?
Eu estava trabalhando na Escola de Cinema de San Sebastián, que tem um foco muito forte no analógico. Me aproximei da Bolex através dessa escola, e a familiaridade com essa tecnologia veio das minhas conversas com os alunos, que estavam trabalhando com ele. Então, isso se tornou algo cotidiano. Decidi que seria interessante me dedicar a esse processo de filmar aos poucos. Eu já havia feito alguns vídeos com Mariano Llinás, que também trabalha de forma um pouco cotidiana, com uma espécie de correspondências no ano de 2020, e essas correspondências eu filmei com o celular.
Então, pensei: “Bom, quero que no novo projeto haja algo de diário, mas acho que preciso de uma imagem diferente, uma nova imagem, que não seja a do celular.” Daí decidi pelo 16mm. Pensando que precisava de algo que eu pudesse manusear bem, a Bolex me pareceu ideal, porque é muito maleável.
Logo surgiu também a noção das limitações da Bolex: a imposição do fragmento, que me pareceu ter a ver com a condição dos poemas de Safo. A ideia do fragmento é muito presente na montagem, o vazio, o que está quebrado, o que se deteriora, que fica exposto. A câmera determinou claramente a ideia de fragmento. Eu não precisaria forçá-lo; ele já estaria presente desde a origem, porque a Bolex não filma mais do que 20 segundos. Se não fosse assim, a ideia de fragmento seria uma imposição. Eu poderia fazer um plano de 8 minutos e depois montar o que quisesse, mas, aqui, a própria tecnologia impunha uma limitação, que fazia eco com algo da memória, do físico. Havia também algo na resistência à imagem digital, que é muito rápida, veloz e fluida. Eu precisava de algo que me fizesse ir mais devagar, que resistisse. A luz no filme resiste, e há algo na natureza do fotoquímico que, para mim, tinha mais a ver com o processo deste filme.
Também lembramos que, se hoje preservamos material, o preservamos em filme, não no digital. Uma das minhas colaboradoras, Tomás Paula Márquez, me chamou a atenção para isso. São ideias que vão se juntando. Eu gostava dessa ideia de ir mais devagar, para poder pensar melhor. O digital me acelerava. Quando fiz as correspondências com Llinás, eu tinha apenas duas semanas para fazer, então precisava dessa velocidade do digital. Mas aqui, não. Aqui, eu tinha tempo, e precisava de tempo, já que não sabia como filmar exatamente. Estava investigando, e não podia ir rápido, porque, se fosse, filmaria de maneira parecida com o que fiz antes. Eu sabia que precisava filmar de forma diferente. Não é um saber que vem de fora, mas algo que se obtém fazendo.
Lendo os créditos, me chamou a atenção que a equipe do seu filme é muito feminina. Como você reuniu a equipe do seu filme e como foram as filmagens? Entendo que envolveram muitas viagens.
Isso tem a ver com o que eu digo sobre seguir a minha vida. O filme vai acompanhando meus próprios caminhos pela vida. Algumas são colaboradoras de longa data, como Maria e Gabi, as atrizes. Este é um filme onde estavam Safo e Britomartis, o que se conecta com os meus outros filmes, sobre os papéis femininos nas comédias de Shakespeare. Há algo nesse universo feminino, na ficção dos papéis femininos, que claramente me interessa.
Formou-se um coletivo em torno disso. O meu núcleo principal é feminino, eu sou o único homem envolvido. Me parecia necessário esse universo. Além disso, foi um desafio interessante, porque é um mundo muito feminino e de feminilidades que às vezes são difíceis de transferir completamente ou de compreender. Por isso, achei importante me cercar de mulheres, de pessoas desse universo. Não era uma tese proposital, mas percebi que a figura masculina, que sempre foi um pouco relegada nos meus filmes, nesta obra em particular, não deveria estar presente.
Até considerei a possibilidade de incluir minha voz no filme, mas decidi que não. Achei que o filme não precisava disso, que essa presença não era necessária. Eu estava buscando algo e sentia que essa presença poderia me desviar. Além da vontade de querer trabalhar com essas amigas, que são muito talentosas e fazem parte da minha vida.
O texto de Pavese parece ressoar com a sua obra ao tratar com muito carinho e com sinceridade a experiência feminina. “O nosso terror é que um homem nos possua, nos capture. Isso seria o fim de tudo”, diz Britomartis. Por que você se interessa por esse tema?
É um interesse na alternatividade. A posição da mulher não se estabelece como algo central, unívoco e totalitário, mas como uma alternativa, uma divergência, um desvio. Há essa tensão entre homem e mulher, que, para mim, parece estar mais alinhada com uma afinidade pela força dessa luta feminina. É uma defesa da escolha de um caminho alternativo, um desvio iluminador.
Pensar sobre isso não é algo natural ou simples, e, com tantos homens ao redor, isso me força a buscar um desvio, a criar um tipo de discurso mutante. Isso me interessa mais do que se fosse uma questão de homem-homem. Isso me obriga a criar retratos mais complexos das coisas, a questionar e desafiar-me a mim mesmo.
O universo masculino também poderia trazer desafios, como o retrato do homem pelo homem, mas o universo feminino me desafia de uma maneira diferente. Além disso, estou muito cercado por esse universo, que me ajuda a ter um contato mais interessante com o artifício. Não é um mero reflexo da realidade, mas uma composição mais elaborada.
O filme retrata a dialética do desejo. Desejo como canção e como destruição. O título rememora essa dualidade do amor também: tú me abrasas. Como você vê o tema do desejo nas suas imagens?
Tú me abrasas evoca uma proximidade, mas também uma perda, uma morte simbólica. Minha maior referência nesse sentido foi Anne Carson, especialmente em Eros, que é um livro sobre o vazio, em que ela fala bastante sobre Safo. As traduções de Carson foram fundamentais para mim, especialmente na ideia de fazer o vazio presente, o “grafema do vazio”, como ela o coloca. Esse vazio, que nunca é preenchido completamente, está sempre ali, uma espécie de vontade de preencher, mas que permanece inacabada.
Nas minhas imagens, o desejo se manifesta nesse mesmo sentido: nunca estão completas, nunca são plenamente satisfeitas. Nenhuma das narrativas de amor no filme chega a um fechamento definitivo. Não há uma sensação de completude ou satisfação total, mas sempre a ideia de que algo está faltando, de uma distância, um vazio que permanece. Isso é fundamental, pois mantém a narrativa em um estado de transformação contínua, em vez de uma conclusão estática e resolvida.
Meus filmes estão sempre em um estado de movimento constante. Eles nunca param, nunca atingem um ponto final em que tudo se resolve. O desejo, para mim, está ligado a essa ideia de distância, de algo que nunca é alcançado. Então, nas imagens que crio, o desejo está presente de forma distante. O modo de atuação é distante, o fragmento nunca é completo, o ritmo da montagem é rápido. Esses elementos refletem essa ideia de desejo, sempre fugidio, além do alcance, em movimento.
A estrutura fragmentária, como em paralaxe, do seu filme abre espaço para a livre interpretação e experimentação do sentido a ser criado pelo espectador. Qual a importância de devolver a experiência do cinema ao público?
Você resumiu bem a essência do que tento fazer. O objetivo é transformar o cinema em uma experiência, e para isso é preciso uma estratégia que crie espaços vazios para o espectador preencher. Preciso que o filme esteja sempre em diálogo — não só com os personagens, mas também com o espectador, e até com o escritor, quando há uma adaptação.
Os planos são montados e cabe ao espectador completar as frases. A história concreta da personagem – o que ela vive, quem a deixa ou não – tudo isso está lá, mas o que realmente me interessa são os conceitos mais amplos, como o desejo, e não apenas a trama em si.
Para que isso funcione, o espectador precisa colaborar, entrar nesse diálogo. O cinema que faço é um convite para esse jogo, em que se espera que a pessoa participe ativamente, que ela não seja tratada de forma passiva ou subestimada. Acho que esse espaço de fragmento e vazio que crio é uma estratégia eficaz para que o espectador coloque algo de si mesmo no filme. Eu não conheço a individualidade de cada pessoa que assiste, mas posso criar um certo tipo de linguagem que permita ao público projetar suas próprias vivências e experiências no que está vendo.
O que me interessa é exatamente isso: que as pessoas se apropriem do filme, que vejam nele coisas que eu não pensei, que o façam delas mesmas. É um processo de co-criação, em que cada espectador pode dinamizar algo dentro de si. Eu gosto da ideia de que o espectador possa moldar a experiência a partir do que ele traz, que o filme sirva como um estímulo para desafiar ou ativar algo em sua própria vida.
Essa é a minha abordagem de encenação, uma forma de permitir que o espectador colabore e contribua com sua própria bagagem emocional e interpretativa.
“Tú me abrasas” foi visto na 48a MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO.