por Lucas Honorato
No texto Da nocividade da linguagem cinematográfica, de sua inutilidade, bem como dos meios de lutar contra ela[1] Luc Moullet defende o fim da “linguagem cinematográfica” em prol da “arte cinema”, manifestando uma oposição completa entre elas ao indicar um sufocamento e invasão da linguagem sobre a arte. Essa cisão é feita por uma crença de que a linguagem cinematográfica seria uma espécie de comunicação reprodutora do objeto artístico, de um roubo da sua aparência sem a sua aura. Em sua acepção, a arte é um bem subjetivo e original, é individual, comunicação em um só instante, própria daqueles artistas. Em oposição, a linguagem é feita pelo espectador que em sua primeira etapa recebe o objeto artístico. E em sua segunda etapa, a profana, o espectador torna-se realizador através da intercomunicação ao refazer índices anteriormente criados pelo artista da obra original. Para Luc Moullet a linguagem é o ato de refazer o que não nos pertence. A linguagem é o roubo[2].
Em uma lógica contrabandista e desviante, posiciono a ideia de que a linguagem cinematográfica é o lugar artístico do cinema justamente por seu lugar dialógico. Não por uma oposição direta a este pensamento supracitado, mas sim por um vigor propositivo do roubo. De um deslocamento de um pensamento individualista junto a um desprendimento da ideia de posse das obras rumo à possibilidade de livre utilização e diálogo com obras anteriores. Seja de maneira direta ou indireta, por aproximação, incorporação ou rejeição de determinados modos e objetos cinematográficos.
Com isso, uso do termo “contrabando como fingimento” definido por Luc Moullet de que “contrabando é fingir que um produto é outro” feita a partir da fala do diretor norte-americano Martin Scorsese. O artista afirma que uma boa parte dos cineastas americanos agem como contrabandistas ao fingirem que o filme é de um gênero ou de que certas obras são adaptações fidedignas de outras e vice versa. Junto à ideia a acepção mais recorrente de contrabando como o ato de circular mercadorias, geralmente roubadas, de maneira clandestina. Ao transpor para o cinema, podemos articular ao menos dois modos de contrabando:
- O do comércio e circulação dos filmes como mercadoria e a pirataria envolvida. Seja de maneira gratuita com os cineclubes e sua distribuição virtual por acervos em drives, nuvens, torrents e streamings piratas; ou de modo pago com os DVD’s piratas, “gato nets” e drives.
- 2. O do contrabando como método na feitura fílmica. Seja pela reutilização de arquivos de terceiros — roubados ou restituídos por direito de utilização livre —, pela citação direta ou indireta ou pelo plágio.
Partindo da máxima de Pierre-Joseph Proudhon que a propriedade é um roubo pelo sistema capitalista, a atenção nesse texto se dará na circulação gratuita, evidenciada por uma cinefilia digital e seu desdobramento com os filmes de arquivos de Cinema-Remix e seu Cine-Sample[3].
As imagens que são produzidas no interior deste sistema que beneficiam e são beneficiadas são fortalecidas pela ideia de propriedade intelectual e privada. Acabam tautologicamente sendo um roubo pela exploração assalariada e a restrição de circulação para aqueles que produzem o imaginário dessas propriedades intelectuais no capital cultural.
O ditado popular “Ladrão que rouba ladrão, tem 100 anos de perdão” sugere a defesa do roubo como método político contrário à ideia de arte original e imaculada, mas não só. Esta tonalidade irônica se alinha a um valor da restituição dessas imagens-mercadorias para o bem público, seja pela livre circulação dos filmes, mas também para maior abertura ao diálogo, amplamente presente na literatura de romance, poética, acadêmica e na música com o remixes, mashups e reinterpretações (covers).
Propus a expansão do conceito de cibercinefilia em minha dissertação para além das práticas dos frequentadores e redatores de blogs de crítica no início do séc. XXI, passando pela construção de uma curadoria e acervo pessoal por meio dos downloads ilegais e envolvendo um pensamento mais amplo, vinculado a cineclubes e festivais de cinema. Com isso, destaco o valor comunitário da cinefilia digital pelo diálogo possível entre cinéfilos – pesquisadores, realizadores, críticos, curadores e cineclubistas via fóruns, redes sociais e sistemas p2p (peer to peer). Resgato tal ideia para destacar a acessibilidade como um fator crucial na renovação de cânones que, em determinados contextos, foram relegados ao ostracismo. A cibercinefilia possibilitou a ampliação das discussões sobre obras, movimentos e textos, além de fomentar um maior pensamento sobre o cinema como campo, para além do filme em si.
Essa prática só foi — e continua sendo — possível graças ao contrabando que transforma a forma- valor marxiana dessas obras — antes restritas ao capital ou ao esquecimento — em um capital cultural acessível ao bem comum.
Ideias do primórdio da internet e da transição do milênio como o copyleft, a cópia de livre circulação, e o código aberto que se envolvem com a noção de contrabando; e a engenharia reversa não só foi como é crucial para o desenvolvimento intelectual, comunitário e antropofágico do cinema enquanto estudo, crítica e produção fílmica. Isso também é observado com a pluralização dos cineclubes, fóruns e drives de cinema que acabaram incorporando em nosso ethos de cinema terceiro mundista uma ética contrabandista de consumir cinema perante a sua forma-valor no capitalismo. Nesse sentido, nossa forma epistemológica de consumir, produzir e estudar cinema é transgressora, mesmo que atualmente em disputa com os grandes serviços de streaming.
Quando essa prática é transposta para a produção fílmica, há um estranhamento entre a liberdade do que se consome e uma restrição de acesso do que se produz e de como os filmes são partilhados. Muitos realizadores bebem de diversas fontes que só acessam por meio da pirataria, mas por conta de inúmeros fatores comerciais, jurídicos e contratuais da produção à distribuição, seus filmes se resumem aos pequenos circuitos comerciais; e justamente por causa da intimidade e da origem do cinema com o capitalismo, sua dimensão industrial e espetacular. Portanto, é neste vínculo que a defesa do roubo age como prática de dissolução ou ao menos de transgressão da ideia de propriedade intelectual aos moldes do capital. Seja para o consumo/distribuição quanto para a feitura. Assim, o roubo simultaneamente nos serve como uma metodologia de prática fílmica contra-hegemônica que nos possibilita pensar a inclusão de outras obras como forma de diálogo crítico, calcado na linguagem cinematográfica e na propriedade privada.
No livro organizado por Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega, Haroldo de Campos – Transcriação, há uma série de textos do autor que envolvem a tradução e sua construção transcriadora, profana, fingida, ficcional e transtextual. Ao trazer a ideia de contrabando como fingimento, resgato, em um de seus textos — Tradução e Reconfiguração: O Tradutor como Transfingidor —, seu argumento de como a transficcionalização, na tradução não servil/literal[4], age como um “ato de fingir”. Isso ocorre por ser caracterizada como uma transgressão de limites que reprocessa o objeto original e desmistifica preceitos de pureza fidelidade ao original.
Essa transgressão é defendida justamente por entender a tradução como crítica ao texto original, de modo em que os elementos atualizados pelos novos ‘atos ficcionais’ de seleção e combinação citam tanto os elementos presentes quanto os ausentes, relacionando-se assim dialogicamente em uma arqueologia de mídias alegóricas.
Com isso, transponho o conceito de transcriação e transficcionalização tanto para a adaptação de diferentes linguagens artísticas (poesia-música, música-literatura, literatura-cinema, etc.), quanto para para obras que utilizam materiais de outrem. Esse fingimento transficcional se deve à importância da seleção, combinação e desnudamento da ficcionalidade como procedimento de transgressão dialógica do material anterior, ou seja, da relação crítica do processo e de sua conexão com os elementos atualizados. Pela seleção e combinação — sua coleção e alegoria dos elementos presentes e ausentes neste diálogo construído entre hipotexto e hipertexto.
Desta forma, utilizo o termo cinema-remix para aqueles filmes que de maneira transtextuais usam outros arquivos para produzir dialogicamente uma terceira obra, seja para referenciar e discutir esta primeira ou para produzir algo completamente dissonante, quimérico e frankensteiniano, mesmo que mantenham (ou não) os vestígios das amostras utilizadas.
A exemplo disso há curtas-metragens brasileiros contemporâneos como Filme dos Outros (2014) e Aluguel: o filme (2015) de Lincoln Péricles, Thinya (2019) de Lia Letícia e o média-metragem Caixa Preta (2022) de Bernardo Oliveira e Saskia que entram nessa categoria mista de cinema-remix contrabandista pela discussão sobre posse e identidade relacionados com o uso de arquivos.
Seja através das imagens utilizadas de dispositivos roubados em Filme dos Outros; Pela transcriação malandra e fingida de Aluguel: o filme e dos planos utilizados e remixados da série televisiva Chaves; da inversão em Thinya da língua alemã pela Ia-tê dos Fulni-ô na leitura de textos de Hans Staden sobre suas expedições colonizadoras alemãs nas Américas, em composição distanciada com fotografias da sociedade alemã do século XX. O filme cria um estranhamento entre imagem, eu-lírico e texto. Também há o uso quimérico de arquivos numa espécie de Atlas Mnemosyne de Aby Warburg remixado de imagens de questões raciais em Caixa Preta que produz um diálogo mapeado de uma série de experiências, com suas contradições, de uma negridade[5] brasileira, sem um ponto ideológico central.
Assim, esse cinema-remix está profundamente inserido nas ideias de linguagem rejeitadas por Luc- Moullet pelas diversas formas de diálogo entre as obras textuais — por isso a dimensão transtextual — seja de maneira fingida, desviante ou restitutiva. Evita, portanto, cair em um valor da comunicação/linguagem como algo meramente servil ao público ou a arte como campo e sim que mobiliza esteticamente como metodologia e técnica política. Do desvio como importante técnica de fuga contrabandista, onde o filme fingido, roubado e/ou adulterado se apresenta por um distanciamento com uma dupla função estética.
É pela via de diálogo que diz pela boca do outro; e ao se relacionar com um terceiro é englobado totalidade como uma citação, com o valor de resgate memorial desse elemento atualizado e remixado. Nesse sentido, apelo para um cinema contrabandista: para que filmes roubem, sequestrem, dilapidem, transformem, surrupiem, desbaratinem, profanem e transgridam de alguma forma estas imagens apropriadas. Seja na circulação clandestina de filmes ou na prática do cinema-remix, como uma forma de resistência à lógica capitalista da propriedade intelectual e à ideia de arte como bem imaculado.
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1.Texto transcrito de uma mesa-redonda da mostra de Pesaro em 1966 presente no catálogo da Mostra Luc Moullet – Cinema de Contrabando, 2011.
2. Idem.
3. Disponível em http://revistacinetica.com.br/nova/lincoln-pericles-anajuliasilvino-2021/
4. [N do E:] Tradução literal ou servil é aquela que busca fidelidade à palavra que se ancora em um ideal de pureza deste sentido eignora as características formais, criadoras e estéticas da prática tradutória.
5. [N do E]: Ver Ligia F. Ferreira. “Negritude”, “Negridade” e “Negricia”: histórias e sentidos para três conceitos viajantes. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-conceituais/153-ligia-f-ferreira-negritude