NO INFERNO COM O CAPETA

Por Rubens Fabrício Anzolin

Há um episódio específico de The Shield (2002 – 2008) que concatena aquilo que de melhor o seriado televisivo possui no que diz respeito à complexidade e contradição de seus protagonistas. À certa altura da terceira temporada conhecemos Robert Huggins, interpretado pelo rapper Andre 3000, dono de uma loja de quadrinhos na periferia de Farmington. Ao ver a rua ser tomada pela epidemia do crack do começo dos anos 2000, ele resolve não somente acionar a polícia como também filmar diariamente todos os usuários da fachada até que os mesmos sejam presos. A solução equacionada pelo então chefe da polícia, David Aceveda, um delegado latino na tarefa de gerenciar o corpo policial precarizado na luta contra o crime na região, é a mais simples de todas: ao invés de autuar ou prender usuários e traficantes, dá-se um jeito de levar a boca de crack um quarteirão para baixo, e tão somente deslocar o problema milimetricamente até que o mesmo exploda mais uma vez, em um ou dois meses. Essa atitude, cirurgicamente equacionada, é sintoma do modus operandi estabelecido pela série criada por Shawn Ryan, no retrato de uma corporação corruptível, maleável e maligna em todas as suas esferas.

Se há algo verdadeiramente notável em The Shield é como cada sujeito, cada extrato social e cada direção assumida por seu sem fim de protagonistas (poderíamos dizer que a série possui um núcleo básico de uns cinco ou seis personagens, no mínimo) nunca possui uma leitura binária. E não se trata de um estudo básico de personagem construído paulatinamente para que ele possua um conflito demarcado — gesto costumeiro de quase todo conteúdo audiovisual feito nos últimos dez ou quinze anos.

Pelo contrário, o paradoxal surge em The Shield quase que instantaneamente. Todo dia uma tarefa diferente se apresenta para cada um dos núcleos da série. Não há um ou dois vilões a serem perseguidos. Há, por baixo, uns cinco ou seis “bandidos” a serem caçados a cada capítulo. Gente morre e gente aparece, paulatinamente, episódio a episódio. A força restauradora de conflitos imprimida pela série se cristaliza a partir de um modo de filmar muito particular e rotineiro, violento por natureza, que coopta a câmera na mão e a direciona instantaneamente ao rosto de seus protagonistas, a partir de uma montagem sobretudo geográfica, de certo modo insana, que aproxima e afasta do corpo o tempo todo, como que roubando do ator ou da atriz seu estado de espírito, seu êxtase energético, seu gesto mais catártico. O modo como conhecemos a Los Angeles de The Shield, com seus guetos urbanos, centros comunitários, hospitais e delegacias de polícias é sempre de soslaio, de passagem, o que traduz a sensação de estarmos habitando constantemente um inferno intermitente.

As salas são sujas, as paredes surradas, as relações e as pessoas fraturadas. O núcleo de bandidos incorpora as mais variadas raças e etnias entre homens e mulheres, brancos, negros e latinos, michês e prostitutas, traficantes e líderes corporativos. Não há qualquer tentativa, por parte de Shawn Ryan e seu corpo criativo, em tornar sua experiência mais branda. Todo dia incorpora- se sempre um aviso: o pior ainda está por vir. E daí talvez seja tão interessante pensar em como um sistema televisivo, alicerçado pelos gêneros mais sofisticados e ao mesmo tempo renegados que o audiovisual já estruturou — do melodrama à ação, das telenovelas aos programas policiais — consegue ver em uma série como The Shield justamente um espelho. A operação é cristalina, pois, se há algo extremamente viril e, ao mesmo tempo, extremamente estiloso, nuançado e cristalino em The Shield é o modo como a série capta para si este sintoma de lata de lixo da história e a reproduz em forma de audiovisual. Não só os sujeitos são sujos e contraditórios, não só a cidade é poluída e violenta, as imagens também o são, e seu estilo é alicerçado a partir de uma mixagem daquilo que há de mais barato no projeto televisivo, uma rotina um pouco espantosa de revelar ao telespectador, quase como se estivesse em um telejornal dos mais violentos, a vida cotidiana de quem tem suas casas invadidas, seus parentes mortos, seus filhos capturados à sorte das mais terríveis torturas.

Ao fim e ao cabo, trata-se de um produto, como todo material televisivo. Um produto que depende, logicamente, de dinheiro e de audiência para sobreviver. Mas o grande truque por trás desta lógica comercial publicitária é como The Shield conformou uma espécie de case de sucesso — lembrar que, à época, nomes como Glenn Close e Forest Whitaker passaram a fazer parte da série após seu sucesso imediato — a partir de uma releitura muito viva e violenta do pathos da sociedade americana.

É como roubar da produção televisiva aquilo que há de mais corriqueiro (seus sensacionalismos, suas vilanizações compulsórias e binárias) e premente, e devolver justamente à ela, televisão, uma hiperestilização desses sentidos todos, para falar não só de seus conflitos étnicos e raciais; de 11/09, de corrupção e racismo no corpo policial, mas para falar também do diabo de cada dia, das entranhas de um mundo que nasce sujo e morre sujo, vagabundo, desleal e descompassado.

A bandidagem, em The Shield, não está apenas em seu conteúdo, nem na celeuma de grandes personagens e atores que protagonizaram espécies de “vilões” desse universo — há poucas coisas mais incontornáveis que o gangster de Anthony Anderson, deslocado totalmente de seu papel de comediante —, mas sobretudo no modo como Shawn Ryan é capaz de liquidificar as linguagens mais óbvias do extrato televisivo, de sua característica inerentemente B, escondida, oculta, para fazê-la dar luz à algo proeminentemente heavy metal, brutal em certo sentido, na face explícita de um mundo que nunca se retrai, nunca para, de um sangue que permanece rolando e rolando, de um lado e de outro, pelo bem e pelo mal, a partir das vísceras explícitas da América.

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