ESTA MANHÃ, ÀS 10 HORAS NO CONHECIDO BORDEL…”AMOR E ANARQUIA” (Lina Wertmüller, 1973)

por Carolina Azevedo

Esta manhã, às 10 horas, na via dei Fiori, no conhecido bordel…

O bordel, velho conhecido da história do cinema, é o palco romanesco no qual se desdobra a conspiração anti-fascista do Amor e Anarquia (Film d’amore e d’anarchia. 1973), de Lina Wertmüller. Naturalmente, a câmera enquadra as prostitutas que ali trabalham, embaladas pela trilha de Nino Rota, e garante a elas o crédito de protagonistas do esquema. Mas o subtítulo, transformado em epílogo, continua: “um homem não identificado, tomado por um ataque súbito de loucura, disparou em uma patrulha policial durante uma inspeção de rotina”. A cena se desdobra entre as prostitutas Salomé (Mariangela Melato) e Tripolina (Lina Polito) e o anarquista caipira Tunin (Giancarlo Giannini), que vai a Roma para terminar o trabalho de seu amigo, morto ao tentar assassinar Mussolini. A cena descrita no epílogo resume a empreitada de Lina Wertmüller: narrar a vida desses bandidos apagados da história da Itália fascista, entre loucos, prostitutas e anarquistas.

Aqui se destacam as prostitutas: Salomé e Tripolina, entre as dezenas de outras garotas que enfeitam o bordel, poderiam repetir as performances das Cabírias da história do cinema, mas se transfiguram em outras imagens ao se envolverem com o esquema anárquico de Tunin. Uma delas é a da prostituta anti-fascista, figura real apagada da história italiana: trabalhadoras do regime de Mussolini, cujos funcionários controlavam e frequentavam as chamadas “casas de tolerância”, aparecem nos registros policiais condenadas à institucionalização por subversão ao fascismo. O livro-reportagem Puttane antifasciste nelle carte di polizia conta histórias como a de Maria Degli Espositi, detida em 1928 por indecência.

Após dizer ao policial “se Mussolini estivesse morto, você não estaria me prendendo”, somaram-se à acusação de Maria os diagnósticos de “louca e paranóica”, rendendo-lhe mais de dez anos de institucionalização.

O controle do corpo das mulheres, sobretudo das mulheres das ruas, é uma constante de regimes autoritários. Mas a imagem subversiva evocada por Wertmüller transcende aquele contexto, refletindo na imagem da trabalhadora do sexo através dos anos e do mundo – discussão esta em voga desde a vitória de Anora (Sean Baker, 2024) no Oscar deste ano. Dedicado às trabalhadoras do sexo, o prêmio levantou estranhíssima onda de misonigina no público brasileiro, cuja história do cinema, no entanto, é repleto de histórias como aquela. A presença cinematográfica da prostituta entre bandidos e mocinhos não é à toa, mas representativa.

Deixando de lado o voyeurismo, Walter Benjamin, em Passagens, evoca a imagem da trabalhadora sexual enquanto exemplo do projeto capitalista moderno: “ao mesmo tempo vendedora e vendida”. No bordel, ainda, a mulher não aparece apenas enquanto mercadoria, “mas, num sentido preciso, como artigo produzido em massa”. Em resumo, a imagem da prostituta ilumina os cinemas mundiais pois potencializa os efeitos da exploração, da objetificação e da alienação capitalista, sofrida por todo trabalhador, em um só corpo. A alegoria datada é renovada por outro aspecto levantado por Benjamin: enquanto mulher, a prostituta não é apenas vítima, como todo trabalhador, mas também agente capaz de expor e destruir o sistema através da sexualidade. Ao negar o dogma essencialista querido ao fascismo e ao capitalismo, desdenhando de seu papel biológico enquanto “reprodutora” e negando ao sexo seu caráter natural, escolhendo o cultural, ela se revela politicamente subversiva.

Frequentado sobretudo por oficiais do governo fascista, em Film d’amore e d’anarchia, as forças subversivas confluem para o bordel quando a figura do anti-fascista encanta as duas garotas, seja pela anarquia, com Salomé, ou pelo amor, com Tripolina. Mas nas imagens de Wertmüller há algo de ambíguo sobre a relação entre os três personagens: um Tunin passivo é levado a ação pelas duas prostitutas até que, no último instante, elas decidem impedi-lo. O personagem de Giannini é passivo até o último o limite – e lhe rendeu o prêmio de melhor ator no Festival Cannes – e pede para que Tripolina o acorde na hora certa para o atentado. Quando ela não o faz, explode a cena descrita na epígrafe, quando Tunin vira enfim o anônimo que atirou contra a patrulha.

Nas margens da sociedade, loucos, anarquistas e prostitutas fazem história em silêncio. Já nas margens do cinema, elas deixam de acompanhar os bandidos e tomam as armas em suas mãos.

Em Film d’amore e d’anarchia, o mundo em que os espaços públicos, dominados pelo poder fascista, são acinzentados e vazios, o bordel, povoado e colorido, é casa de prazeres e de políticas revolucionárias.

Riso, gozo e revolução estão nas mãos dessas “putas sentimentais de merda”, como descreve Salomé ao falhar da conspiração, cujas condições sociais escancaram e fazem troça de um capitalismo sempre autoritário. Um pouco como a Medusa de Hélène Cixous, Lina Wertmüller escolhe não apenas denunciar a imbecil máquina fascista, mas, pelo teatro da sexualidade feminina, histerizar o espaço social e, enfim, rir.

*

FacebookTwitter