EM MARTÍRIO, LEVEI MINHAS MÃOS AO ROSTO: MASCULINIDADE E CRIMINALIDADE EM ACCATTONE,DE PIER PAOLO PASOLINI

Por Felipe Fiedler

Há algo no gesto ritualístico da culpa, que nos faz esconder nossa face diante da vergonha de ações as quais cometemos. O gesto é acentuado, quando incorporado por um cristão, ou pelo menos, um cético romano batizado pelas águas abençoadas de Cristo. Torna-se ainda mais enfático, se esse cristão ou esse cético romano é um homem ou uma pessoa que performa a masculinidade. Em Accattone (1961), de Pier Paolo Pasolini, as atitudes criminosas e maldosas de uma pessoa são confrontadas por si mesmo, não na crença de seus pecados, na confissão secreta das cortinas, mas no arrependimento escondido, nos cantos das periferias da cidade de Roma.

No primeiro longa-metragem dirigido pelo então jovem escritor, militante e cineasta italiano, a representação do protagonista como o herói operário em declínio com sua sobrevivência no pós- guerra, é substituída pelo criminoso sem pudor, um cafetão chamado Vittorio, mais conhecido como “Accattone”, que vive às custas da exploração sexual de sua esposa Maddalena. Vittorio não trabalha, aliás, repudia o trabalho com todas as suas forças. “Accattone”, em italiano, significa “o homem fora do mundo de trabalho”. O longa de estreia de Pasolini alcançou os cinemas no início da década de 1960, em um período considerado o epílogo do neorrealismo italiano. Apesar disso, há elementos que contradizem os argumentos e rotulações de Accattone ser considerado parte do neorrealismo. Além da dimensão épica e grandiosa da construção dos planos junto aos seus cenários, destoando de um olhar neorrealista sombrio e ferido, ainda há figura do proletário sendo questionada

Em um filme de protesto social, era esperado que o trabalhador tomasse o papel de herói, como é apontado pela teórica Maria Bethânia Amoroso, destacando a figura do então subproletário: o ladrão, o bandido, o marginal o qual “só seria aceito, desde que houvesse uma redenção, isto é, ganhasse consciência crítica ao final do filme”[1].

Com isso, Pasolini passou a ser observado com olhar de estranhamento pelos críticos e espectadores da época, que o julgavam como uma pessoa amoral e devasso. Tais julgamentos escondiam não somente o conservadorismo burguês da classe média por detrás de suas palavras, mas também o preconceito diante da homossexualidade de Pasolini.

A poesia gloriosa e santificada do cineasta italiano, intensificava a inexpressividade emocional masculina de seus personagens, sendo possível enxergarmos além de sua própria pele. Além disso, a fabulação com o cenário periférico e em reconstrução da cidade de Roma, constrói momentos próximos da metafísica, da pureza do corpo e da natureza, transitando entre o onírico e a sacralidade cristã, estabelecendo planos minimalistas contrastantes entre claro e escuro, imenso e pequeno, destacando ora o cenário ora a corporalidade e expressividade de suas personagens.

Em Accattone, o homem marginalizado é jogado de lado pela sociedade que nunca o estendeu a mão, o levando a miséria. Tamanha condição social abre espaço para relações em que a masculinidade é performada da forma mais opressiva e repressiva possível. Os abusos tornam-se uma rotina circular, a qual rebaixa aqueles que a questionam ou escolhem não reproduzir seus manejos. Pasolini reforça seu interesse em registrar o corpo masculino e as cicatrizes da inexpressividade contida, por meio de sua direção, com grande sensibilidade. O filme nos coloca em um universo pós-guerra de repressão social, escancarando as dinâmicas de núcleos masculinos que exercem um papel definitivo nas malícias e decadências de uma sociedade abandonada. Violência sexual, demonstração de força física, humilhações, repulsa pelo trabalho, pela lealdade e pelo amor, são rituais que servem como gestos de comprovação dessa masculinidade. Quem não participa desses ritos, não é aceito, torna-se motivo de piadas, é condenado a eterna solidão do “fraquejado”, como assim é visto o irmão de Vittorio, Sabino.

Já no início do filme, Vittorio reproduz tais gestos de comprovação de sua masculinidade diante da aprovação de seus amigos. O cafetão, em meio a um jogo de cartas, provoca um de seus colegas com a aposta de saltar de uma ponte, com estatura assustadora, ao rio abaixo, e sobreviver diante do vazio de sua coragem. Não é de se esperar, que muitos garotos, crianças, adolescentes, homens feitos e velhos, reúnem-se para observar ao ato de loucura de Accattone. Após uma breve oração à Nossa Senhora, o jovem salta em um mergulho olímpico. No entanto, não o vemos emergir das águas. Pasolini nos deixa com o mistério de sua sobrevivência, que logo é revelado no retorno do jogo de cartas. Todos os homens em silêncio. É então, quando vemos Accattone, cuspindo no rosto de seu amigo, perdedor da aposta.

As profundezas dessa masculinidade são claramente vinculadas ao crime destes homens. O tratamento deferido às mulheres as quais eles se relacionam, é puramente sexual e agressivo diante de sua retração emocional, tornando esse tratamento também parte do ritual de aceitação desse grupo. Maddalena, esposa de Vittorio, é explorada sexualmente por seu companheiro, manipulada mediante ameaças, recebendo a culpa por seus crimes. Ao tomar a coragem de denunciar um dos colegas do marido, é punida com imensa violência em retaliação por companheiros do denunciado. Na delegacia, Maddalena é confrontada com a decisão de condenar aquele o qual a machucou tanto. Nesta cena, Pasolini cuidadosamente nos coloca na mente de Maddalena. Enquanto os suspeitos são dispostos em frente a jovem mulher, sendo nenhum deles seus agressores do dia anterior, no entanto, ainda assim, eram agressores de muitas outras mulheres como ela.

Há uma dinâmica de moralidade pontuada não somente nos exercícios narrativos, mas também na movimentação da câmera de Pasolini, que percorre lentamente os rostos dos suspeitos, paralisando o movimento no rosto de alguém reconhecido pelo olhar subjetivo de Maddalena, elevando seu interior emocional com um zoom, nos aproximando deste sentimento e terrível decisão.

Uma das faces reconhecidas pela jovem é a de seu próprio marido, o qual poderia facilmente ser denunciado por muitos outros crimes. Ironicamente, é presa que ela encontra liberdade para denunciar a rosto do marido para a polícia. Apesar das orações feitas para Nossa Senhora, mãe misericordiosa, a condenação ao martírio veio de uma mulher, proclamando, assim, a tragédia.

O peso da culpa pelos “pecados” de Accattone o perseguem de forma, muitas vezes, supersticiosa, aproximando o destino do protagonista do crucifixo de Jesus Cristo, como é abordado por Amoroso1. São em momentos em que Accattone encontra-se sozinho, que o que é carregado em seu peito manifesta-se, um sentimento que Pasolini encontra representar na performance e na corporeidade da personagem, na face cabisbaixa e perdida, nas mãos que tentam esconder seu rosto, o levando momentaneamente ao acalento da escuridão. Essa manifestação é também presenciada verbalmente, quando Accattone pede perdão ao seu único filho, sem que ele ouça sua voz, momentos antes de furtar seu colar de ouro, na tentativa de surpreender sua nova paixão, Stella, em disputa com seu amigo “boa vida”, Pio. Há também o reflexo visual, em cenas que se assemelham ao cinema onírico de Federico Fellini, como a procissão de luto nas periferias de Roma, acompanhadas de duas crianças que fazem o “sinal de cruz” no instante em que Vittorio passa em frente a elas, hipnotizado pela caminhada religiosa, a qual mais tarde, próximo a fim do filme, é relembrada em seus sonhos com tamanha poesia da sobreposição de imagens e a repetição sonora da respiração de Accatone.

Os elementos sacros de uma fé cristã, não demonstram apenas um caráter cultural do cineasta, que apesar de ateu, cresceu em meio a religião católica, mas também uma escolha poética, que através da metafísica e da subjetividade invisível da santidade, consegue alcançar o coração de um homem que vive isolado de sua própria sensibilidade. São sinais os quais não surgem como uma premonição divina, uma mensagem dos céus anunciando seu destino. Aqui, a voz de Deus, é a voz de sua própria consciência.

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  1. AMOROSO, Maria Betânia. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Nós, 2022, p. 24-25.  
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